Ariovaldo Ramos

Eu tive fome e me destes suas sobras. Não precisava tanto, ministro

O ministro sugeriu dar aos necessitados que têm fome o que seria jogado fora. A ministra da Agricultura sugeriu mexer no prazo de validade dos alimentos

Reprodução
Reprodução
Cena de "Monty Python - O Sentido da Vida" (1983)

Eu estava numa esquina, perto do metrô,
esperando uma carona para ir ao seminário
fazer o meu trabalho de ensinar a ser cristão,
à gente que queria estudar o Evangelho

Foi quando eu vi na cercania
um jovem de moletom
que olhava pro meu lado sem mostrar o que queria
aí meu preconceito, que conceito,
fui pra perto de mais gente, inda era dia

E o moço atravessou,
depois de muito ensaio,
chegou na minha esquina
e me olhava de soslaio

Eu era diferente de toda aquela gente
e ele estava ali bem pra lá de constrangido
fingi que não vi, mas eu fiquei chocado,
ele comia frango que tinha sobrado

Ali naquele nicho que estava na esquina,
um perdido amontoado de sacos de lixo
aí eu ouvi o grito do cordeiro,
gritava em minha alma e me tomava por inteiro

Eu tive fome, eu tive fome, eu tive fome, eu tive fome
eu tive fome, eu tive fome, eu tive fome, eu tive fome

O jovem àquela altura já estava ajoelhado,
estava a escolher, do lixo, mais bocado
usava o capuz pra esconder a cara
enquanto separava tudo o que se aproveitava

eu to com fome, eu to com fome, eu to com fome, eu to com fome.
eu to com fome, eu to com fome, eu to com fome, eu to com fome.

E a vergonha tomou conta de mim,
eu entendi o clamor de quem carecia
E que o evangelho ensinado estava assim,
insensível ao grito da periferia

eu to com fome, eu to com fome, eu to com fome, eu to com fome.
eu to com fome, eu to com fome, eu to com fome, eu to com fome.

E eu ia ensinar a carta aos romanos,
onde Deus se ira contra a injustiça
onde chama a igreja a se engajar
A abandonar o conforto da preguiça
a gente tem de abandonar os grandes templos,
sair desse púlpito de mármore
buscar o vitimado, antes que o Cristo nos seque
exatamente como fez com aquela árvore

eu tive fome, eu to com fome, eu to com fome, eu tive fome.
eu to com fome, eu tive fome. eu to com fome, eu tive fome.

Esse é o grito do ungido,
um grito que não deve jamais ser esquecido
eu tenho de sair desse marasmo
que perde a primogenitura
e ir pra uma comunidade,
que escute todo o grito da cidade
uma comuna cuja envergadura
seja a justiça a toda criatura

Uma vida de igreja de verdade
uma igreja engajada na história
uma igreja que abrace o pequenino
pra que ninguém mais o trate como escória

Uma igreja que fale da cruz,
que fale da ressurreição
que sonhe com uma humanidade
onde o título maior seja irmão

eu tive fome, eu to com fome, eu to com fome, eu tive fome.
eu tive fome, eu to com fome, eu to com fome, eu tive fome.


Questão

A trágica experiência desse jovem aparece como possível intenção do governo para com todos os empobrecidos, nas falas do ministro da Economia, e da ministra da Agricultura. O ministro da Economia sugeriu dar aos mais necessitados o que iria “ser jogado fora”, ou o que teria de ser descartado para o lixo. A ministra da Agricultura sugeriu mexer no prazo de validade dos alimentos… os alimentos que, hoje, seriam tidos como de prazo de validade vencidos, com a mexida, poderiam ser destinados aos empobrecidos.

É…

Os evangélicos que apoiam o presidente têm como lição de casa mudar a fala de Jesus, o Cristo: em vez de “tive fome e me destes de comer”, poderia passar a ser “tive fome e vocês me deixaram comer tanto de suas sobras quanto de alimentos vencidos”.

Façam-no logo para poder continuar a chamar o monstro de ungido, evitando, assim, pular no abismo, como fez o Judas Iscariotes.


Ariovaldo Ramos é coordenador da Frente de Evangélicos pelo Estado de Direito e apresentador do programa Daqui pra Frente, na TVT, toda quarta às 20h


Artigos desta seção não necessariamente expressam opinião da RBA