Contribuição à história

O 1° de Maio de Dona Elvira: lutas e cantorias

Quem ajuda a entender a importância das manifestações históricas do 1° de Maio é Dona Elvira Boni, uma militante anarquista, em entrevista que deu em 1983

Arquivo pessoal de Marcolino Jeremias, membro do Núcleo de Estudos Libertários Carlo Aldegheri – NELCA – Santos/SP
Arquivo pessoal de Marcolino Jeremias, membro do Núcleo de Estudos Libertários Carlo Aldegheri – NELCA – Santos/SP
Foto com Elvira Boni na mesa de encerramento do Terceiro Congresso Operário, 1920

LEHMT/UFRJ – O dia 1o de maio tornou-se, internacionalmente, o Dia do Trabalho, por ter sido a data em que, em 1886, um combativo conjunto de trabalhadores da cidade de Chicago enfrentou uma violenta repressão policial, por reivindicar melhores condições de trabalho, em especial uma jornada de oito horas. Nesse 1o de maio houve trabalhadores mortos e feridos, além de muitos que foram presos, o que deve nos lembrar que este é, por excelência, um dia de luta por direitos, que são difíceis de conquistar e precisam ser permanentemente defendidos, pois se a luta pode avançar, também pode recuar. É o que vivemos hoje, no Brasil, após a chamada Reforma Trabalhista de 2017 que, aliada a outras iniciativas governamentais, produziu, de fato, o enfraquecimento, quando não a eliminação, de direitos trabalhistas arduamente conquistados pelos trabalhadores brasileiros, numa mobilização que tem mais de um século.

Vem ó maio, saúdam-te os povos!
Em ti colhem viril confiança.
Vem trazer-nos cerúlea bonança,
Vem ó maio trazer-nos dias novos!
(Hino do Primeiro de Maio, Pietro Gori, 1892
)

Isso porque é possível acompanhar essa história, a partir das manifestações ocorridas no 1o de maio desde o início do século XX, quando os trabalhadores ocupavam as ruas das principais cidades do Brasil, com destaque para o Rio de Janeiro, então a Capital Federal, e São Paulo. Quem vai nos ajudar a entender a importância desses acontecimentos é Dona Elvira Boni, uma militante anarquista que eu entrevistei no ano de 1983, quando escrevia minha tese de doutorado. Ela tinha 84 anos e morava em um apartamento no bairro de Laranjeiras, onde gentilmente me recebeu. Como seu nome me fora indicado pelo meu amigo e seu vizinho, José Sérgio Leite Lopes (que então também fazia sua tese de antropologia), não precisei me esforçar muito para convencer Dona Elvira a conversar comigo e me contar como havia se tornado anarquista e como esse engajamento marcara sua vida. Nascida em família de imigrantes italianos, seu pai e irmãos aderem ao anarquismo e à luta dos trabalhadores, no Rio de Janeiro. Com esse apoio, Dona Elvira iria frequentar a Liga Anticlerical entre 1909 e 1911 e ser uma das cinco moças que fundaram a União das Costureiras, Chapeleiras e Classes Anexas, em 1919. Uma associação combativa de orientação anarquista, que logo organizou uma greve pela jornada de oito horas de trabalho e se manteve atuante até 1922. Nela, Dona Elvira ocupou a função de tesoureira. Experiência rara, porque se as mulheres eram presença marcante no movimento operário do início do século XX, no Brasil e no mundo, não costumavam ter posição ou função de liderança em diretorias de associações.

As décadas de 1900 e 1910 são muito agitadas para os trabalhadores do país que, em 1917, fizeram uma greve geral em São Paulo (capital e interior), que se alastrou para o Rio de Janeiro, Porto Alegre e Recife. Os grevistas demandavam a jornada de oito horas, a abolição do trabalho noturno para mulheres e “menores”, além de melhores salários, reivindicações fundamentais e recorrentes ao longo do tempo. Os anarquistas tinham, nesse contexto, muita força no interior do movimento operário e, em novembro de 1918, realizaram uma revolta no Rio de Janeiro, que evidenciou o alto grau de organização que haviam alcançado, sendo duramente reprimidos. Mas antes dessa revolta, o ano de 1918 registrou dois grandes e trágicos acontecimentos. Em julho, na capital federal, houve o incêndio e desabamento do Hotel New York, na moderna Avenida Central. Com dezenas de trabalhadores mortos, o que repercutiu muito entre a população, o incêndio foi uma catástrofe que acabou por ajudar o andamento da lei de Acidentes de Trabalho, que tramitava no Parlamento e foi aprovada em janeiro de 1919. Mais terrível ainda, foi a chegada da Gripe Espanhola, da qual Dona Elvira foi uma vítima e sobrevivente. Segundo ela – o que as fotos das revistas ilustradas confirmam – os mortos eram tantos, que os cadáveres ficavam nas calçadas, havendo quem pedisse para os encarregados de recolhê-los, levar primeiro os mais antigos e deixar os mais frescos, uma vez que era impossível transportar todos eles. A Gripe Espanhola, cuja gravidade as autoridades federais e estaduais, de todo o país, custaram a admitir e, por isso, a combater, foi um flagelo para a população das cidades, mas também para a do interior. Todo o país, do Amazonas ao Rio Grande Sul, foi atingido e, como acontece sempre quando há epidemias, os mais vulneráveis foram os pobres, entre os quais estavam muitos trabalhadores que morreram sem qualquer tipo de assistência.

É nesse clima que o ano de 1919 começa. Um ano em que haveria eleições presidenciais e, o que era raro, com disputa real entre dois candidatos: o de situação, o paraibano, Epitácio Pessoa e o de oposição, o jurista baiano, Rui Barbosa. Além disso, com o fim da Primeira Guerra Mundial, o Brasil participava da Conferência de Paz em Paris, sendo signatário do Tratado de Versalhes. Epitácio Pessoa, o candidato do governo, era o representante do Brasil. E o que tudo isso tem a ver com a luta por direitos dos trabalhadores? Tem sim, primeiro porque, pelo Tratado de Versalhes, as nações signatárias se comprometiam a implementar políticas que melhorassem as condições de vida e trabalho dos “assalariados urbanos”. Segundo, porque Rui Barbosa fazia uma campanha eleitoral inusitada, chegando a falar para grandes audiências em lugares públicos. Quer dizer, a situação nacional e internacional estava mudando e se tornando um pouco mais favorável às demandas dos trabalhadores.

Assim, embora várias cidades já conhecessem as manifestações de 1o de maio, pois elas ocorreram em anos anteriores, as que aconteceram em 1919, em especial no Rio de Janeiro seriam diferentes, por sua magnitude, marcando a memória dos trabalhadores fossem anarquistas ou não. O local escolhido para a concentração foi a Praça Mauá, porque fazendo parte da região portuária da cidade, era tradicionalmente ocupada por aqueles que trabalhavam no porto ou embarcados, e também por uma grande população de trabalhadores, que lá morava e/ou frequentava com assiduidade, pois ela abrigava um circuito de religiosidade e lazer populares. Dona Elvira, que esteve presente a essa demonstração, explica que o início da manifestação foi na Praça Mauá, e que lá ocorreu um grande comício. Em seguida, os trabalhadores percorreram, em passeata, toda a Avenida Rio Branco até chegarem ao Palácio Monroe. Durante o desfile, de tamanho impressionante, vários oradores se posicionavam, ao mesmo tempo, ao longo da avenida, fazendo discursos, não sem dificuldades, devido à empolgação do povo e à falta de amplificadores para voz.  Mas o que os trabalhadores mais gostaram de fazer, enquanto caminharam, foi cantar. Dona Elvira, uma artista de teatro anarquista de linda voz, mesmo aos 80 anos, disse que, nesse dia, “cantou-se tudo quanto foi hino que se sabia”. Cantou-se o Hino dos Trabalhadores, o Hino do 1o de Maio, O Sol dos Livres (com a música do Sole Mio) e, claro, A Internacional. Nada era muito planejado, nem muito afinado; mas os trabalhadores fizeram questão de cantar. Manifestações desse tipo ainda aconteceram em 1920, no Rio e em outras cidades, mas foram escasseando e encerrando uma experiência que, se não teve tanto sucesso em termos de conquistas imediatas, foi fundamental para a história da luta dos trabalhadores, sempre em curso, sempre sendo retomada.

No dia 1o de maio de 1919, a Praça Mauá, o Centro do Rio e, sobretudo, o povo trabalhador tiveram um desfile memorável. Dona Elvira me falou que nunca se esqueceu desse dia e, como testemunho, cantou para mim, com emoção, todos esses hinos que convidam à resistência e à luta. Ela, miúda, olhos claros e cabelos brancos (como os meus agora), se transformava, ganhando força diante de mim. E eu, depois de ouvi-la contar e cantar, também não esqueço, dividindo com vocês o agradecimento que sempre farei a ela.

Angela de Castro Gomes é professora titular de História do Brasil da Universidade Federal Fluminense e professora Emérita do CPDOC/FGV

Texto publicado no Laboratório de Estudos de História dos Mundos do Trabalho (LEHMT), da Universidade Federal do Rio de Janeiro