Ariovaldo Ramos

Na Paixão, Cristo demonstra como passar por sofrimento atroz sem conjugar o verbo sofrer

Na Paixão, Cristo mostra que sofrimento não pode nos roubar a identidade nem nos tirar o privilégio e a responsabilidade de ser o sujeito da nossa história

Amurca/Pixabay
Amurca/Pixabay

Jesus, o Cristo, passou por um sofrimento enorme e sem precedentes, desde que, antes da fundação do mundo, se esvaziou. E assumiu a forma de servo (Fp 2.5-7), o que foi manifestado na cruz, por amor de nós (1Pe 1.18-20). Jesus Cristo passou pelo sofrimento, mas, não conjugou o verbo sofrer. Quando a gente conjuga o verbo sofrer, a gente traz o sofrimento para o espírito, a gente passa a se definir pelo sofrimento. A dor física e a tristeza, inerente ao sofrimento, passam a ser a identidade da gente. A vida passa a ser uma lamúria e a gente, a se definir a partir do sofrimento que sofreu ou sofre, carregando-o para sempre como uma carteira que se mostra quando se quer falar de si.

Jesus nunca se permitiu a isso, diante da tristeza frente à truculência do sofrimento, e à traição e abandono dos seus alunos, ele continuava a afirmar que a sua vida ninguém tomava, ele a entregava para a reassumir (Jo 10.17,18). Ele partia o pão e distribuía o cálice da nova aliança (1Co 11.23-26). Ele, e não o sofrimento a que se submeteu, é que estava como sujeito de sua história. E por causa desse protagonismo nunca negociado, Jesus Cristo pôde dizer, no momento de dor e de abandono mais intensos, a Paixão: “Pai, perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem.” (Lc 23.34) – a frase que sustenta o Universo.


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Se Jesus tivesse conjugado o verbo sofrer, amaldiçoaria seus algozes e toda a humanidade. A tentação de conjugar o verbo sofrer, de tornar o sofrimento na identidade da gente, foi vencida por Jesus o tempo todo; ele sempre manteve a sua identidade fundamentada em seu relacionamento com o Pai: “…sabendo este que o Pai tudo confiara às suas mãos, e que ele viera de Deus, e voltava para Deus, levantou-se da ceia, tirou a vestimenta de cima e, tomando uma toalha, cingiu-se com ela” (Jo 13.3,4).

Que boa notícia: a dor e a tristeza, inerentes ao sofrimento, não têm, necessariamente, de tomar o espírito e redefinir a identidade de quem passa pelo sofrimento! E, depois da queda, viver é passar pelo sofrimento, porque este foi, por nós (Gn3.17), tornado o ambiente onde toda a história se desenrola.


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O mais triste, quando o sofrimento se torna a identidade da gente, é que tudo e todos passam a ser julgados ou analisados a partir do que se entende ter sofrido.

A reação da gente passa a ser, sempre, reação àquele sofrimento que sequestrou a identidade da gente. E qualquer ser humano, o outro, desaparece, vira algoz ou salvador, mesmo nunca tendo participado do que sofremos. Ou mesmo que tenha sido instrumento de Deus na vida da gente algum dia, inclusive, nos ministrando ou socorrendo no momento do sofrimento. Nada mais isenta o próximo, todo mundo estará sob “Júdice”. E, como disse o compositor, “qualquer desatenção, pode ser a gota d’água”. A gente passa a gostar do martírio!

Na Paixão, Jesus, o Cristo, nos demonstra como passar pelo sofrimento mais atroz sem conjugar o verbo sofrer. E assim nos ensina como sofrimento algum pode nos roubar a identidade. Nem tirar de nós o privilégio e a responsabilidade de ser o sujeito da nossa história. Aleluia!

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