Desenvolvimento em foco

Como o neoliberalismo transformou as políticas de emprego na Europa

Na estratégia de políticas de emprego da União Europeia de hoje não existe a expressão “pleno emprego”, mas “níveis aceitáveis de desemprego”

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As políticas de emprego são as ações do Estado criadas para superar um dos principais males trazidos pela dinâmica capitalista: a criação de um excedente de mão de obra, os desempregados. Este artigo descreve as estratégias criadas para diminuir o desemprego no maior bloco econômico do mundo, a União Europeia. Se antes as políticas de emprego europeias antes eram keynesianas e buscavam o pleno emprego, elas passaram a ser liberais e buscar um “nível aceitável de desemprego”. A versão mais completa do artigo foi publicada na 16ª Carta do Observatório de Políticas Públicas, Empreendedorismo e Conjuntura da Universidade Municipal de de São Caetano do Sul (Conjuscs).

Os economistas neoclássicos, liberais, acreditam que o mercado de trabalho, funcionando livremente, consegue atingir um equilíbrio entre oferta e demanda de trabalho. O desemprego só existiria se fosse “voluntário”, ou seja, se os trabalhadores se recusassem a terem seus salários diminuídos (daí a aversão dos economistas liberais aos sindicatos). Para eles, a intervenção do governo neste mercado não faz sentido, e na verdade, só atrapalha.

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Contra essa ideia, difundida em 1936, John Maynard Keynes (1883-1946) diz que os níveis de emprego estão diretamente relacionados com os níveis de consumo e investimento. Quanto mais investimentos e consumo ocorrem numa economia, mais empregos são gerados. Porém, as incertezas sobre o futuro podem fazer com que empresários escolham não investir e com que indivíduos escolham não consumir. Assim, as empresas decidem demitir ou não contratar mais, ocorrendo desemprego involuntário. Estaria nas mãos dos governos garantir níveis de investimentos e consumo que possibilitassem o pleno emprego.

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Políticas de emprego keynesianas

Foi com a Grande Depressão dos anos 1930 e com as consequências da Segunda Guerra Mundial nos anos de 1940 que os Estados capitalistas desenvolvidos consolidaram uma estrutura de promoção do bem-estar coletivo, em que as políticas de emprego keynesianas têm papel central. 

Os níveis de emprego durante os 30 anos posteriores à Segunda Guerra nestes países foram os maiores da história do capitalismo (média de 0,8% de desemprego na Alemanha entre 1960 e 1973; e 1,5%, na França e Inglaterra entre 1960 e 1967).

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A expansão dos gastos públicos foi fundamental nesse processo, mas não foi a única solução empregada. As políticas de (pleno) emprego nesse período também utilizaram outros instrumentos, como a redução da taxa de juros, como forma de incentivar o investimento privado, e políticas de redistribuição de renda como forma de incentivar o consumo.

As políticas de emprego keynesianas são, portanto, um largo espectro de políticas macroeconômicas, de regulação trabalhista e proteção social, com um compromisso político claro a favor do pleno emprego.

A ideia por trás dessas políticas é bem explicada pela seguinte frase, dita por um militar britânico durante a Segunda Guerra, e presente no documentário O Espírito de 45 (2013), dirigido por Ken Loach (2013):

“Nos anos 30, tivemos desemprego em massa. Em tempos de guerra, não temos desemprego. Se podemos ter pleno emprego matando alemães, por que não podemos ter pleno emprego construindo casas, construindo escolas, recrutando professores, enfermeiras, médicos?”

Políticas liberais

Esse espírito perdura até meados dos anos 1970, quando entram no poder, a nível internacional nos países desenvolvidos, forças políticas influenciadas pelo pensamento liberal e centradas no indivíduo, difundido por autores como Hayek e Friedman e a Escola de Chicago. Esses ideais entram no debate público com a ascensão dos governos conservadores de Margaret Thatcher no Reino Unido e Ronald Reagan nos Estados Unidos.

A partir dessa nova configuração econômica-social, denominada de neoliberalismo, as políticas de emprego passam a se resumir em ações focadas no mercado de trabalho, que visam garantir alguns direitos sociais básicos, nomeadamente o seguro-desemprego e a educação profissional, sobretudo para os grupos com mais dificuldades em conseguir um emprego.

As políticas de emprego liberais estão alinhadas com os pressupostos da economia neoclássica, que defende que a intervenção do Estado deve existir apenas para corrigir as falhas de mercado. Sendo assim, as políticas de emprego liberais focam-se apenas nas falhas do mercado de trabalho. Deixa-se para um segundo plano questões mais estruturais, que são as raízes dos problemas, como a desigualdade e a renda baixa, que estão presentes nas políticas keynesianas.

Além disso, também assumem o pressuposto liberal da responsabilização individual. O objetivo dessas políticas é aumentar a empregabilidade das pessoas desempregadas, ou seja, desenvolver as competências profissionais de cada pessoa para aumentar as chances dela conseguir um emprego. O Estado serve para preparar os indivíduos, e estes são os únicos responsáveis por conseguir um novo emprego.

Mudança na União Europeia

O abandono do compromisso social pelo pleno emprego e o crescimento da responsabilização individual nas políticas de emprego foi um processo que levou décadas, conforme pesquisa documental que realizei nas legislações da União.

O Tratado de Paris, de 1951, foi o primeiro passo para a integração entre os países do continente. Logo em seu artigo 2, o tema do emprego fica explícito na frase: “A missão da Comunidade Europeia do Carvão e do Aço é contribuir (…) para o desenvolvimento do emprego”. Foram criados apoios para empresas com baixos níveis de produção, e fica esclarecido que o apoio é para assegurar a manutenção dos níveis de emprego nessas empresas (artigo 58). Na página 172, ficaram combinados estudos para “evitar uma distribuição desigual entre os funcionários e reduções no emprego que poderiam resultar de uma redução da demanda”. Eram os princípios teóricos keynesianos sendo colocados em prática nas políticas públicas. O Tratado de Roma de 1958 também continua neste espírito.


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Ainda que esses dois tratados sejam a gênese da União Europeia, foi apenas em 1992, com o Tratado de Maastricht, que este bloco de países, da forma como o conhecemos hoje, integrado por meio de um mercado e moeda comuns, foi instituído. A forte influência neoliberal do período moldou a integração europeia nesse período, tendo uma uma visão econômica monetarista, de controle das contas públicas e moderação salarial. O único aspecto de política de emprego que ficou regulado no principal tratado da União foi em relação às políticas de formação profissional, inseridas no capítulo 3, A educação, a formação profissional e a juventude.

Em 1994, a União lança a Estratégia Europeia de Emprego que ainda hoje é a principal legislação europeia sobre o assunto. Em nenhum momento aparece a expressão “pleno emprego”, que foi substituída por “níveis aceitáveis de desemprego”. A estratégia é baseada em: aumentar a qualificação profissional e flexibilizar o mercado de trabalho para criar empregos.

As políticas de emprego da União Europeia, embora tenham nascido na década de 1950 com uma visão keynesiana, foram modificadas sob influênciada ideologia neoliberal durante a década de 1990. Problemas estruturais e sociais de maior amplitude não são enfrentados por essas políticas, cujas soluções se voltam para centros de formação profissional, flexibilização da regulação e incentivos ao empreendedorismo.


Marcelo Vegi da Conceição é mestrando em Economia e Políticas Públicas pelo Instituto Universitário de Lisboa. Bacharel em Gestão de Políticas Públicas (USP)