Desenvolvimento em foco

Redes religiosas na periferia do Grande ABC

Região de crescimento desordenado como toda a Grande São Paulo, ABC trouxe desenvolvimento para o país e angústias para suas periferias

ABCD Maior
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Grande ABC tornou-se uma região próspera para alguns, mas grande contingente populacional ainda vive em condições precárias nos bairros periféricos

O Grande ABC, por sua industrialização nas décadas de 1950 e 1960, estruturada num forte complexo automobilístico, tornou-se região importante para o capitalismo brasileiro. Esse processo levou à constituição de uma classe operária que, nas décadas de 1970 e 1980, conseguiu dar novo impulso à organização sindical possibilitando, ainda no regime militar, a construção de uma agenda de enfrentamento (ao setor patronal) que resultou em conquistas trabalhistas importantes. Vale destacar que o crescimento da região do Grande ABC, assim como São Paulo, se deu de forma relativamente desordenada. Para dar conta do processo de urbanização foi necessário contingente expressivo de mão de obra. Isso causou grande deslocamento de pessoas, especialmente do nordeste e Minas Gerais.

Paul Singer chama a atenção, nesse processo, para a formação de regiões de “atração” (que receberam expressivo investimento público e privado e, portanto, tiveram maior desenvolvimento) e regiões de “expulsão”. O Grande ABC tornou-se uma região de atração, com as indústrias automobilísticas, mas nem todos os migrantes trabalharam nos setores produtivos, onde estavam os melhores empregos. Muitos foram para a construção civil, ou trabalharam em serviços de menor remuneração. Não podendo adquirir uma moradia nos bairros melhores, e mais centrais, que já sofriam valorização imobiliária, e porque tinham condições econômicas precárias, parte dessas pessoas se acomodou nos bairros periféricos. É nesse contexto que abordamos a importâncias das redes religiosas para a população da periferia, tema que tratei na 16ª Carta de Conjuntura da USCS.

Periferias urbanas e redes sociais

As “periferias urbanas” são territórios afastados, do ponto de vista geográfico e, sobretudo, social das regiões centrais. Além da deficiência de equipamentos públicos, boas escolas, por exemplo, pela falta de investimentos do Estado, sofrem com a ausência de empregos (locais) e renda. Há deficiência de boas moradias e de adequado nível de saneamento básico. Esse conjunto de situações leva a população a um estigma que agrava, ainda mais, a situação. Não raro, perdem oportunidades de emprego pela “imagem” (distorcida com relação à realidade) que se tem da população.

Nesse contexto, ganham importância as redes sociais. Aqui, a expressão “redes sociais” são as formas “concretas” de aproximação e interação, que ocorrem a partir de práticas associativas, mais ou menos formais, entre indivíduos ou grupos, não se limitando às relações por meio de aplicativos, a que o termo usualmente se refere. Numa condição de “ausências”, as redes sociais se tornam espaços importantes de convivência que, a depender dos vínculos criados, possibilitam um conjunto de benefícios.

A eficácia da rede tem, em alguma medida, relação com a qualidade dos vínculos criados. Quanto maior for o tempo de relação entre as pessoas, maiores as chances de ocorrerem as referidas trocas. Ajuda, com alimentos ou remédios, em situação de desemprego, é muito comum, como também são comuns as indicações de empregos ou bicos. Em geral, nas regiões de maior precariedade, as redes formadas entre vizinhos, por exemplo, apoiam-se nas trocas de favores e ajuda mútua. Estudos no campo da sociologia e antropologia urbanas mostram que nas periferias as redes religiosas ganham protagonismo. E isso não é diferente no Grande ABC.


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As pessoas (especialmente os homens) participam de partidos, ONGs, associações culturais ou de lazer – Sociedade Amigos de Bairro (SABs), por exemplo –, mas a indicação da participação em alguma prática associativa tem maior peso no campo religioso. Também é maior o tempo dedicado (especialmente pelas mulheres) nas redes religiosas do que nas demais. As redes religiosas são, também, importantes espaços de troca de informações entre seus participantes, o que é fundamental para o acesso a determinadas “estruturas de oportunidade” – empregos, bicos etc.

Pesquisa de doutorado por mim realizada entre 2011 e 2015, sobre associativismo religioso no município de Rio Grande da Serra, um dos sete municípios do Grande ABC, traz elementos que ilustram a ideia aqui apresentada. A cidade tem (estimativa para 2020) população de 51.436 (IBGE/Cidades). Parcela importante vive em situação de média e alta vulnerabilidade social. O município recebeu contingente expressivo de migrantes na década de 1970, sobretudo do Nordeste e de Minas Gerais. As redes religiosas foram importantes para seu “acolhimento”. Ao mesmo tempo, a chegada dos migrantes impactou na organização dos grupos religiosos.

As redes religiosas em Rio Grande da Serra formam-se, em sua maior parte, entorno da Igreja católica (46,05%) e das Igrejas evangélicas (36,70%). Esses dados são de 2010, e, tudo indica, sofreram alterações. Entre os evangélicos, destacam-se as igrejas pentecostais (24,18%). O kardecismo e as religiões de matriz africana estão presentes em menor número.


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Do ponto de vista da atuação dos grupos religiosos, por se tratar de uma cidade com muitos problemas sociais, é inevitável que, cada um a seu modo, atuem na esfera econômica, com preocupação voltada para a população mais carente. No entanto, a importância das redes religiosas é também na esfera simbólica. Os bens “simbólicos” (em geral propiciado na experiência religiosa) podem ser subjetivos, mas não são abstratos, ou seja, são percebidos como um capital importante para quem dele se beneficia.

No caso da Igreja Católica, podemos citar aqui a Associação Vicentinos e a Associação Cristo Rei como redes importantes no âmbito social, mas a presença das “pastorais sociais”, nas comunidades carentes, é de grande relevância. A “pastoral da criança”, por exemplo, tem um trabalho importante com gestantes e crianças recém-nascidas. Com relação aos benefícios simbólicos, os “sacramentos” (que para o católico é o caminho da salvação), as “celebrações eucarísticas”, e os grupos de oração (no caso dos carismáticos), são muito importantes, sobretudo para os “católicos praticantes”.

As igrejas não pentecostais destacam-se, no caso dos projetos sociais, por redes estruturadas em “associações” focadas na Educação. Os cultos, entre os não pentecostais, são marcados por uma leitura intelectual das escrituras. E têm maior relação com aspectos “morais”, que para o membro é um capital simbólico de grande valor. A participação, nesse grupo religioso, é em geral, de pessoas com maior escolaridade e moradoras da região central.


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As igrejas pentecostais destacam-se em trabalhos de apoio aos dependentes químicos. As igrejas procuram fazer campanhas (de arrecadação) para ajudar nos problemas financeiros de seus membros ou de pessoas cadastradas. Os cultos pentecostais são marcados pela “emoção” ritual. Para o “crente”, a emoção do culto é resultado da presença do Espírito Santo. Há a preocupação moral, mas foco é na resolução de problemas (saúde, emprego, família). O pentecostalismo está presente em toda a cidade, inclusive nas regiões mais carentes.

O kardecismo e a umbanda estão menos presentes na cidade. Com relação ao kardecismo, pela pouca estrutura, os trabalhos (religiosos) são voltados para estudos do evangelho, com o objetivo de realizar a “reforma íntima”. A participação no grupo é sobretudo de moradores da região central e possuem boa escolaridade. No caso da umbanda, costumam realizar campanhas de arrecadação, sobretudo para as crianças no dia de São Cosme e Damião, mas pela própria característica religiosa, os problemas materiais e espirituais são resolvidos nas atividades cerimoniais. Os participantes da umbanda, entre todos os grupos, são o que mais mesclam pessoas de diferentes condições sociais.

A partir de uma (breve) análise das redes religiosas em Rio Grande da Serra, pudemos observar que as variadas redes atendem, cada uma, a determinadas demandas. O catolicismo e o pentecostalismo, por exemplo, respondem melhor, do que outros grupos, aos problemas da população em maior situação de vulnerabilidade social, até porque estão presentes nos bairros mais carentes.


Claudio Pereira Noronha é cientista social da religião, assessor do Sindicato dos Bancários do ABC e pesquisador convidado do Observatório de Políticas Públicas, Empreendedorismo e Conjuntura (Conjuscs) da Universidade Municipal de São Caetano do Sul