Por Paulo Vannuchi

Damares, o ataque à civilidade e o STF

É fundamental barrar o ataque à participação da sociedade civil na política de Estado de direitos humanos, como quer a ministra Damares

Alan Santos/PR
Alan Santos/PR

No ambiente dramático que devora o país nos últimos dias, com a trágica confirmação dos alertas da ciência a respeito da pandemia, pouco espaço mereceu na mídia a brilhante peça jurídica preparada por Deborah Duprat, em parceria com outros advogados de Brasília, para sustar a portaria baixada em 10 de fevereiro pela ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves.

Sob o pretexto de revisar a política nacional de direitos humanos, não resta dúvida de que o plano da ministra é, na verdade, preparar o que seria um programa bolsonarista nessa área. Uma tentativa de blindar com aparente legalidade as políticas discriminatórias e preconceituosas que o atual presidente prega em suas agressões diárias aos princípios mais elementares de civilidade e do respeito à vida.

:: Mulheres repudiam ministra Damares em manifesto pelo 8 de Março

A Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) foi protocolada junto ao Supremo Tribunal Federal (STF) no primeiro dia de março, sob a legitimação do PCdoB, mas em paralelo a uma iniciativa semelhante da CUT e cinco de suas confederações nacionais no dia seguinte, enquanto se aguarda a resposta de outros partidos e mesmo de governadores convidados para se somarem.

Logo que a portaria da ministra foi publicada, a deputada federal e ex-ministra Maria do Rosário (PT-RS) apresentou um projeto de Decreto Legislativo para sustar aquela decisão ministerial. Convocou-se imediatamente uma plenária que reuniu pela internet mais de 100 instituições entre as mais representativas no Brasil, voltadas à proteção e à defesa dos direitos humanos.

Nessa plenária, coordenada pela deputada Rosário, em parceria com a colega Áurea Carolina (PSOL-MG) e por membros do Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH) – colegiado de Estado que o bolsonarismo não poderá calar – havia consciência de que será difícil aprovar a iniciativa em uma gestão da Câmara onde a mesa diretora nasceu de um conluio entre o chamado centrão e a direita mais fisiológica.

Para não se concluir que a proposta de decreto legislativo nasce sem nenhuma chance, a grande surpresa da plenária foi a presença do vice-presidente da Câmara, Marcelo Ramos, que participou do diálogo, interrompendo férias com a família. Recebeu simbolicamente o documento e comprometeu-se a trabalhar pela aprovação. Quem viver, verá.

Deborah Duprat adiantou nessa plenária as bases gerais da ADPF, apoiada pelo ex-ministro Eugênio Aragão, sendo ambos os juristas procuradores federais do mais alto nível enquanto estiveram na ativa. Aragão ainda foi valorizado pela presidenta Dilma Rousseff como seu ministro da Justiça. Não se entende até hoje como os recentes governos progressistas perderam a chance de alçar Duprat à merecida condição de Procuradora Geral da República, ou ministra do Supremo, preferindo figuras opacas como Gurgel de Faria e Rodrigo Janot.

Quis a deusa da sorte que a ADPF fosse distribuída a Kassio Nunes, neófito na Corte e no tema, quando ministros muito díspares a respeito do lavajatismo e dos direitos humanos de Lula – Luís Roberto Barroso, Alexandre Moraes e Ricardo Lewandowski, por exemplo – ostentam em seu currículo importantes trabalhos, teses e decisões nesse campo.

Também neste caso, o sorteio aziago não deve ser considerado uma pá de cal. Vale lembrar a sábia orientação de nosso patrono Dom Paulo Evaristo Arns – “de esperança em esperança” – repetida sempre na TVT por Juca Kfouri – “desesperar jamais” – para se admitir a hipótese otimista de que Kassio aproveite a oportunidade. Qual oportunidade? Mostrar que é agora um ministro do Supremo, ciente do papel que lhe cabe como guardião da Constituição. E não somente um juiz da cota de Bolsonaro, disposto a manifestar gratidão pelo posto vitalício.

A Comissão Arns se alinhou imediatamente com a resistência da sociedade civil à portaria de Damares, publicando na Folha de S.Paulo, em 21 de fevereiro, um artigo contundente assinado por quatro de seus fundadores:

“A Comissão Arns propõe às entidades de direitos humanos ficarem atentas para impedir, se preciso com ajuda do Judiciário, tais retrocessos. E apela às instituições da democracia a barrarem esse ataque à participação da sociedade civil na política de Estado de direitos humanos”.

O desfecho desse embate cresceu de importância a partir da última sexta-feira, quando a Comissão Interamericana de Direitos Humanos divulgou um duro relatório a respeito do Brasil, denunciando a violação sistemática que se acelera desde a posse do atual presidente. Esse relatório pode e deve ser lido por todas as pessoas que se preocupam com o resgate da democracia no Brasil. Antes que seja tarde demais.

O eixo da argumentação jurídica da ADPF é solidamente construído em torno dos princípios da participação popular e da não regressividade em direitos humanos. Depois de reconstruir o democrático processo de elaboração dos três Planos Nacionais de Direitos Humanos (PNDH – 1996, 2002 e 2009), nascidos em diferentes governos, mas exibindo sintonia plena e continuidade no conteúdo, a ação pede ao Supremo a anulação dos efeitos da portaria:

“A persistência dessa portaria e a sensação transmitida às lutas coletivas de que tudo foi perdido está na contramão do projeto constitucional de 1988 (…).

Não se está a falar, aqui, da mera criação de um grupo de trabalho, mas sim da possibilidade concreta de que a avaliação de políticas de direitos humanos e dos programas a elas pertinentes possam se dar sem a participação da sociedade civil, em sua diversidade e multiplicidade”.

Está agora com a palavra o Supremo Tribunal Federal.