Desenvolvimento em foco

Por que a medicina deve ser baseada em evidências estatísticas e ciência de dados

A pandemia da covid-19 invadiu o mundo. Cientistas do mundo todo buscam alternativas nos “Esconderijos do Tempo”. E juntos vivemos isso de forma real

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A velocidade da produção científica e dos atendimentos da saúde estão cada vez mais em sintonia com a marcha do vírus

O método científico muitas vezes escreve a teoria de forma não convencional. Conclusões explícitas ou implícitas, descritas nos mais de mil artigos publicados desde o final de 2019 em Wuhan, podem não ter a eficácia descrita na conclusão do estudo. Dizer que as conclusões são corretas, não é a afirmação de que o medicamento/protocolo/vacina é eficaz. Talvez hoje possa ser o futuro descrito em “haverá o não tempo sagrado da morte transfigurada”. [Clarice Lispector, 1978]. Quantas vezes, os pesquisadores ao final da análise estatística observam que a hipótese clínica não pode ser validada pela hipótese estatística (fundamentada na clínica). Seria a morte da verdade [Goya]? Seria tarde demais para tentar tudo novamente e não reprová-la? Talvez seja o tempo de “demorar até que chegue a diligência do abismo”? [BSoares/FPessoa, 1982]

Essa é a vida do cientista, estatístico, médico. Refutar, corroborar, discutir em pares/equipes multidisciplinares, estudar, recomeçar. A BBC News Mundo (set/2020), destacou avanços científicos conquistados em meio à pandemia: trabalho colaborativo (universidades, grupos, centros de pesquisas e países); sequenciamento do vírus; desenvolvimento de técnicas de diagnóstico (detectar a doença), vacinas, protocolos, medicamentos, cultura da ciência e de práticas de higiene, prática de saúde baseada em evidência; realizadas em um curto espaço de tempo real.

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Clínica e estatística

As hipóteses clínicas devem ser traduzidas em hipóteses estatísticas, para que os testes possam desempenhar a missão de interpretar o experimento. Os testes de hipóteses medem os efeitos do tratamento dos estudos, e os grupos de tratamento podem apresentar melhores resultados do que os de controle, em cada variável/característica medida/observada.

Este pode ser um resultado esperado (positivo para o pesquisador). Mas, se as diferenças não se apresentarem estatisticamente significativas em níveis de confiança de 95% (valor arbitrário e entendido pela comunidade acadêmica como aceitável para uma discussão), a conclusão formal pode ser negativa, e o cientista pode compreender que não exista evidência suficiente para a amostra do teste adotado (tamanho do efeito do tratamento pode ser igual ao tamanho do efeito do controle para o nível de confiança escolhido). Uma interpretação plausível: nos estudos em que as evidências do efeito do tratamento forem positivas, estatisticamente inconclusivas (não é possível concluir em 95% [nível de confiança] dos casos), então, o efeito não pode ser atribuído à aleatoriedade.

As buscas das evidências no método científico

A confusão pode ocorrer porque a evidência é medida usando o valor de p; na teoria clássica estatística, quando p alcança valor maior que 5%, pode significar que os resultados esperados estejam relacionados ao aumento da incerteza nas evidências obtidas. Esses valores podem ser grandes por dois motivos: o tratamento não foi realmente eficaz e as evidências encontradas foram devido à aleatoriedade; ou; o tamanho da amostra não foi grande o suficiente para medir com precisão o efeito real do tratamento.

Desta forma, se o valor p não for pequeno o suficiente, menor que 5%, não será possível atribuir esse fato ao efeito do tratamento (e então o problema pode ser devido ao planejamento/delineamento do estudo; teste estatístico; tamanho amostral; mas não necessariamente deve indicar que não exista diferença entre os tratamentos). A American Statistical Association defende que reduzir a análise de dados ou inferência científica a regras mecânicas de “p<5% como único recurso para justificativas ou conclusões científicas pode levar a tomadas de decisão inadequadas e verdades incertas [Wasserstein, 2016].

A cautela necessária

Em geral, espera-se que nos testes estatísticos clássicos, a hipótese nula (H0) não seja aceita [Makin, 2019]. Existem sempre duas hipóteses, quais sejam, H0 (definida pelo pesquisador) e H1 (como a contrapartida de H0); o teste verifica H0 contra H1. O resultado pode ser aceitar ou rejeitar H1. Aceitar H1: aceitar a hipótese da contrapartida de H0. Rejeitar H1: não é igual a aceitar H0, é simplesmente rejeitar H1 (estatística clássica).

Estatísticos bayesianos [Coscrato, 2019] propõem que este dilema possa ser superado utilizando testes de hipóteses agnósticos; que controlam os erros tipo I/tipo II, não controlados na estatística clássica. Neste processo científico de protocolos, medicamentos, vacinas sobre Covid ou qualquer outra doença, há de se considerar, três pontos: dificuldades encontradas nas interpretações dos testes (passíveis de contradições lógicas); dificuldade em tomar uma decisão precisa para a resposta do teste realizado; possível falta de importância prática ao rejeitar uma hipótese precisa. Portanto, é necessário ter cautela com a questão da reprodutibilidade de pesquisas e da capacitação na área de estatística/ciência de dados.

Incertezas no caminho do método científico

E tudo pode parecer mais complexo na pandemia, momento em que cientistas do mundo todo, unidos com um mesmo propósito e contra o tempo e as mortes, buscam incansavelmente resultados interpretáveis, precisos e reprodutíveis. Durante esta pandemia, [Izbicki, 2020] a prática de inquéritos epidemiológicos (sorológicos), são importantes para monitorar a evolução do Covid-19 na população. É imprescindível estimar a prevalência da doença para que seja possível uma tomada de decisões precisa (estimadores de prevalência com intervalos de confiança corrigidos e controlados para todos os “viéses”).

No início da pandemia (primeiro semestre/2020), a Imperial College London apresentou um estudo sobre a estimativa do número de óbitos para Covid-19 ao redor do mundo. Construíram um modelo preditivo bayesinao (prevê a porcentagem de infectados usando fontes de incerteza na modelagem [incerteza de informações, ou falta delas, que possam de alguma forma afetar significativamente a previsão]).

E o que talvez pareça óbvio hoje, foi descrito no início da pandemia, como algo novo: “nem todos os humanos serão infectados, nem todos os infectados irão desenvolver os sintomas, e, nem todos os infectados irão morrer ou necessitar de hospitalização”. Mas naquela época, eram incertezas que constavam no modelo de forma combinada, a fim de que fosse possível entender qual o impacto de um paciente infectado e assintomático na taxa de contaminação da população e como tal fato poderia afetar o número de mortes nessa população.

A incerteza como uma trilha para a morte da verdade [Goya]? E assim, os impactos dessa pandemia são sentidos na saúde física e mental dos indivíduos, na economia e na vida social. De forma assustadora e invisível, a praga de 2020 extrai contradições da sociedade civil, dos governos, dos cientistas. Nunca dantes essas questões foram discutidas de forma tão abrangente, com tantas incertezas.

A marcha do vírus

Cada vez mais abre-se o espaço para desigualdades, vulnerabilidades, conhecimento real e realidades fictícias muitas vezes não verdadeiras. A incerteza fundamentada é parte do processo científico. A velocidade da produção científica e dos atendimentos da saúde estão cada vez mais “em sintonia” com a marcha do vírus. “O PubMed notifica que recebe mais de 2.000 artigos por semana sobre a Covid-19” [c/s/coletiva].

Contudo, por mais que se trabalhe de forma pulsante e poderosa na área da saúde e na ciência em geral, todos somos reféns das intervenções humanas no ambiente natural e social, e a depender do comportamento de cada um, o potencial pandêmico pode ser revigorado e “novas ondas” podem ocorrer. [c/s/coletiva]. Quantas “verdades ficam mortas pelo caminho, nos desastres de uma guerra contra a vida” [BSoares/FPessoa,1982]? E então, de forma incansável, o médico, o cientista e o estatístico, pensam consigo mesmos que a busca das evidências está no seu curso de vida.

Regina Albanese Pose é coordenadora do Setor de Apoio Estatístico à Pesquisa do curso de Medicina da Universidade do Município de São Caetano do Sul (Uscs)
Tatiane B Ribeiro é pesquisadora em Saúde Baseada em Evidências, Avaliação de Tecnologias em Saúde e Farmacoepidemiologia.
Enrico FM Andrade, MD, PhD, é gestor do Curso de Medicina Uscs.