Descontrole

Autonomia policial ou emancipação predatória? Os riscos para a sociedade

Em vez de se buscar produzir controle, falamos em unificação de polícia, na contramão do que se fez e se faz em democracias

Fernando Frazão/Agência Brasil
Fernando Frazão/Agência Brasil
Violência policial: negros e minorias são as maiores vítimas das abordagens policiais violentas e dos abusos de autoridade

Desde a minha tese de doutorado sobre a Polícia Militar, defendida 21 anos atrás, tenho insistido que o problema dos meios de força combatentes e comedidos é de governabilidade. Eles sofrem de emancipação predatória e se recusam a qualquer expressão de controle civil. Tem-se autonomia demais e controle de menos do principal poder que uma sociedade livre delega ao Estado para administrar em seu nome: o poder de polícia que dobra vontades e restringe liberdades. Controlar o poder de polícia ou exercer governo civil sobre o mandato de uso potencial e concreto de força tem sido a razão primeira das reformas policiais continuadas nos países democráticos. Todas elas buscaram blindar as polícias dos usos clientelistas e das apropriações privatistas. Isto corresponde a garantir que as polícias possuam independência político-partidária e dos interesses do mercado, sejam subordinadas ao seu mandato estatal e às políticas públicas conduzidas pelo executivo.

Afinal, as espadas, por sua própria natureza, têm um potencial de autonomização que se faz, em uma certa medida pactuada dentro do Estado e autorizada pela sociedade policiada, necessária para a produção de pronto-emprego policial e prontidão militar.  Sem delimitação, controle e constante aprimoramento desta autonomia não se tem como garantir a estabilidade e a previsibilidade no exercício do poder por governos legais e legítimo. Sem governabilidade sobre os meios de força tem-se a constituição de autarquias sem tutela que aprisionam governantes em seus gabinetes, chantageiam parlamentares, silenciam oponentes, pautam a justiça e ameaçam a sociedade.

Procuração em aberto

O poder de polícia, definido no Código Tributário de 1966 e as competências policiais herdadas da última reforma policial de 1968, são uma procuração em aberto produzida durante o regime militar. E seguem assim por força dos lobbies das polícias explicitados desde a constituição de 1988. Note-se que o artigo 144 é uma reprodução emendada de entulhos do passado e que atenta contra o desenho federativo. Corresponde ao seis trocado por meia dúzia com palavrinhas performance de efeito.

Nas ambições de reforma policial no Brasil imperam o moralismo prescritivo e o gerencialismo voluntarista pautados em premissas fake-science. O mimimi da ingerência política é o discurso-chantagem para ampliação do poder coercitivo para fins particulares. É a cantilena corporativista que tem possibilitado a milicialização, cujo nome adequado é constituição de governos autônomos policiais: um fenômeno comum quando a espada se autonomiza da sociedade, do estado e do governo eleito. Não somos únicos e nem originais nisso. É um fenômeno repetitivo sempre que se tem mandatos policiais abertos, autonomizados.

Brasil na contramão

Enquanto em meus artigos acadêmicos e de opinião tenho insistido sobre o governo dos meios de força em democracias, à luz das reformas de polícia no ocidente democrático, assisto aos unicórnios de carnaval ou as crendices sobre polícia e segurança pública. Polícia, policiamentos e segurança pública têm sido um território moral de negacionismo da produção científica dos últimos 70 anos.

Ao invés de se buscar produzir controle falamos em unificação de polícia, na contramão do que se fez e faz em democracias. Com isto, fortalecendo as ambições de monopolismo policial esboçado na carta de 1988. Ampliamos ainda mais o poder informal de polícia com discursos prevencionistas de natureza epidemiológica sem delimitação do que seja  isto. O que significou, na prática policial, licença para matar ou eliminar, já que não existe como se produzir prevenção direta em polícia.

Autonomia policial

Vejam que muitos discursos progressistas ao não quererem lidar com o problema do controle e da coerção em sociedades livres e plurais, reproduziram lendas emancipadas da ciência. E de certa forma fortaleceram os discursos corporativistas.  Cabe lembrar que a proposta de unificação de polícia saiu das PMs que pretendiam engolir as polícias civis. Como tenho insistido nestes 25 anos de pesquisas, ensino e formulação de políticas públicas, a espada não pode ela mesma definir a extensão e profundidade de seu corte. Pois, assim, ela corta a língua do verbo da política à direita, à esquerda, ao centro e ao lado e rasga a letra da lei. Sabe-se que se o seu vigia se torna mais forte que você, ele senta na sua cadeira, te dá um golpe e governa em seu  lugar.  

No Brasil, sofremos de monopolismo policial, um cheque em branco por nós assinado. Nosso suposto “sistema” policial possui concentração e centralização do poder coercitivo, ao arrepio de uma república federativa. Governadores têm servido como animadores de auditório das polícias. Parlamentares se prestam a serem promotores de auto-estima policial corporativista. A maior parte dos projetos de lei sobre segurança e polícia são pacotes prontos, escritos por representantes das corporações e isto não é de agora. 

Sem controle externo

Desde 2000, se assiste à crescente condução das secretarias de segurança estaduais por policiais federais. Em 2008, eles já comandavam as secretarias de 16 estados. Este movimento cresceu nos governos progressistas. Adverti que ninguém manda na PF ou nela faz a tal da “ingerência”. Isto é um mimimi cortina de fumaça para ocultar a sua ingovernabilidade, assim como a de outras polícias. Desde Sarney tivemos 31 ministros da justiça e 17 diretores gerais da PF. Ministro que tenta controlar a PF costuma ser fritado.

Quais são os dispositivos profissionais de controle externo e interno das polícias? Não há. Quais são os dispositivos de accountability das polícias? Não há. Mas, entre nós a solução vem antes do problema. O Susp que concebemos, em 2003, virou um clube de agentes armados desregrados. A Força Nacional que projetamos virou um ornitorrinco que serve como uma gambiarra coercitiva para o ministro da ocasião brincar de polícia. 

O debate da segurança pública segue refém do discurso do medo e cloroquinado com os profetas de segunda-feira e os mercadores dos brinquedos da proteção.  Tanto os conservadores quanto os progressistas permitiram a ampliação do poder de polícia sem regulação. Isto de FHC para cá. Uns pela via repressiva e os outros pelo ilusionismo prevencionista woodstock. Assiste-se aos modismos de ocasião.

Autonomia policial é guepardo no quintal

Não se deve colocar um guepardo para vigiar o nosso quintal. E tem sido isso que temos feito seja por achismo ilustrado, seja por ignorância vaidosa. Lembro que assim como  o General Góes Monteiro deu vida à “Política do Exército”, assistimos hoje algo análogo com os projetos de lei sobre as polícias. Essas propostas são antigas e agora encontram ambiente para prosperarem. É bom lembrar que não se deve improvisar com espadas.

A inamovibilidade mais longa das chefias da PF foi nos governos Collor (sete anos de Romeu Tuma) e Dilma (seis anos de Leandro Daiello). Ambos sofreram impeachment. Coincidência, não? FHC, que não era bobo, governou sem criar controle policial. Mas não deixou o pessoal da justiça e da segurança se apegar ao cargo. Teve 10 ministros da Justiça e seis chefes da PF. Ninguém esquentou cadeira para afiar espadas contra ele e seus aliados. Bolsonaro também não tem nada de trouxa: em dois anos de governo, já contabiliza dois ministros da Justiça e 3 chefes da PF. A esperteza foi manter a panela com rodízios dos grupos internos que seguram e mexem a colher de pau ao seu favor para fazer favores. A fila anda e cada grupelho tem a sua vez.

Enfim, seguimos de chantagem corporativa em chantagem corporativa, reféns da insegurança como projeto de poder, vendo golpe em tudo e não enxergando onde ele  pode, de fato, se construir. Seguimos com a baixa institucionalidade e os limbos normativo-legais dos meios de força. Mas, discutindo sobre o papel de bala ao invés de tratar do recheio podre. Agradinhos orçamentários e brindes corporativos não produzem lealdade e adesão das espadas.


Jacqueline Muniz é professora do Instituto de Estudos Comparados em Administração de Conflitos do Departamento de Segurança Pública da Universidade Federal Fluminense (DSP/IAC/UFFF)


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