Análise

Vídeo: os 10 anos da ocupação do Alemão. Por Jacqueline Muniz

Segurança não é cerco nem confinamento. Não se pisa no chão dos outros sem pedir licença. A politicagem jogou fora a água do banho e, junto, a criança

Arquivo Agência Brasil
Arquivo Agência Brasil
Forças de segurança ocupam o Complexo do Alemão. Ação das policias, com apoio das Forças Armadas, teve tanques, helicópteros bandeira do Brasil hasteada na parte mais alta do morro

Como eu avisei na época da ocupação do Complexo do Alemão, a UPP era tão somente uma unidade militar destacada, uma etapa provisória de gestão territorial com prazo de validade curto.  Não é possível nem no alemão, nem em lugar nenhum, garantir segurança pública somente com saturação ostensiva ou presença policial massiva no território. O que fazem os efeitos policiais repressivos, dissuasórios e preventivos durarem, são a mobilidade social e urbana e o acesso aos direitos que fazem dos cidadãos  portadores de bens que não querem perder para a violência e o crime.

A infraestrutura social e urbana é o sambódromo da segurança pública por onde a polícia pode fazer um bom desfile e não perder na apuração popular. É a infraestrutura social e urbana que rompe com o enxuga gelo policial, que economiza efetivo policial multiplicando a presença e a pronta resposta da polícia. Uma andorinha sozinha da PM jamais faria o verão da prometida pacificação.

Avisei que o CMDT da UPP não poderia virar governador militar de favela, sozinho com a brocha na mão fazendo as vezes de animador de auditório da cidadania, prefeito, juiz, defensor, prestador de serviços sociais, recriador esportivo,  promotor cultural, etc. Tudo que a polícia pode produzir em qualquer lugar é sempre provisório, porque a polícia não muda consciência e vontade de ninguém, ela apenas altera a oportunidade de ocorrências de crimes, violências etc.

Jacqueline Muniz: ocupação do Complexo do Alemão

Sem investimentos em infraestrutura social e urbana nos territórios com histórico de disputas armadas, o trabalho da polícia, por melhor que seja a intenção, vira um enxuga gelo caro, um mais do mesmo para pior que imobiliza muito efetivo, gera escassez de policiamento no entorno dos territórios ocupados e no asfalto. E, ainda pior, abre espaço para o uso excessivo de força. A politicagem jogou fora a água do banho e junto a criança.

O programa de polícia de proximidade foi sabotado por dentro do próprio governo com sua ambição eleitoreira.  Não havia, não há e nunca teriam  recursos possíveis para tanta UPP. E não é preciso tanto gasto para produzir o resultado do controle do crime convencional e organizado. Não se tem como produzir gestão territorial só com PM, fazendo o papel de guarda de condomínio de favela. Era preciso um trabalho conjunto com as demais polícias, guarda municipal, corpo de bombeiros  e,  principalmente, a subprefeitura e a administração regional com um programa de longo prazo e em larga escala  de provimento de serviços e bens essenciais  a baixo custo para a população (luz, agua, internet, regularização fundiária, transporte, urbanização, etc.).

Segurança pública é entrar e sair, é circulação, deslocamento de pessoas, serviços, bens, direitos. Não é cerco, nem confinamento. Tampouco se tem como fazer segurança pública sem a participação e consentimento dos moradores. Não se entra e pisa no chão dos outros sem pedir licença, sem bater na porta. Senão todos batem a porta na sua cara, ninguém te dá um copo d’água. Senão tudo vira abuso de autoridade e desacato de autoridade. Uma verdadeira torre de babel que ninguém se entende. E a sociedade policiada que protege e defende o policial que a policia.

Ocupação no Alemão e Repressão ‘Miojo’

A imposição militar dobra vontade só no imediato, é uma repressão miojo lamen. Já a persuasão e negociação com o morador, soma vontades e gera estabilidade, rotina de policiamento, convivência pacífica. Uma coisa é se sujeitar a polícia que gera revolta e sabotagem. Outra coisa é obedecer às regras de convivência pactuadas para garantir a lei para todos e uma ordem de todos que gera adesão e cooperação.  Sem isso, o que acontece é a síndrome do cabrito do sobe-desce morro que não controla território e  nem população, animando a cabeça quente, o coração aflito e o dedo nervoso do tiro, porrada e bomba. 

Por isso, é que toda ocupação policial tem prazo de validade. Porque para permanecer  é preciso ser convidado a ficar, fazer por merecer. Já que o histórico passado era de encontros infelizes entre a polícia e o morador de favela. Não há como policiar de verdade sem adesão social, pois a sociedade é mais forte e tem todos os meios para inviabilizar o trabalho policial. 

Polícia não expulsa sociedade do seu território, mas sociedade algema e expulsa a polícia que não tem condição de permanecer pela perda da confiança, da credibilidade, pela imagem deteriorada. Ninguém leva a paz de fora pra dentro. A paz é construída de dentro pra fora com o suporte do Estado e apoio da sociedade. Como cansei de avisar na época, se o programa de implantação das UPPs seguisse do jeito que seguiu, de forma eleitoreira, ultrapassando a capacidade operacional e orçamentaria instaladas, seria a principal avenida para a milicialização que cresceria. Como acabou acontecendo. Algo a se refletir neste 27 de novembro em que se completam 10 anos da ocupação do Complexo do Alemão.


Jacqueline Muniz é professora do Instituto de Estudos Comparados em Administração de Conflitos do Departamento de Segurança Pública da Universidade Federal Fluminense (DSP/IAC/UFFF)


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