Vídeo: os 10 anos da ocupação do Alemão. Por Jacqueline Muniz
Segurança não é cerco nem confinamento. Não se pisa no chão dos outros sem pedir licença. A politicagem jogou fora a água do banho e, junto, a criança
Publicado 27/11/2020 - 20h01
Como eu avisei na época da ocupação do Complexo do Alemão, a UPP era tão somente uma unidade militar destacada, uma etapa provisória de gestão territorial com prazo de validade curto. Não é possível nem no alemão, nem em lugar nenhum, garantir segurança pública somente com saturação ostensiva ou presença policial massiva no território. O que fazem os efeitos policiais repressivos, dissuasórios e preventivos durarem, são a mobilidade social e urbana e o acesso aos direitos que fazem dos cidadãos portadores de bens que não querem perder para a violência e o crime.
A infraestrutura social e urbana é o sambódromo da segurança pública por onde a polícia pode fazer um bom desfile e não perder na apuração popular. É a infraestrutura social e urbana que rompe com o enxuga gelo policial, que economiza efetivo policial multiplicando a presença e a pronta resposta da polícia. Uma andorinha sozinha da PM jamais faria o verão da prometida pacificação.
Avisei que o CMDT da UPP não poderia virar governador militar de favela, sozinho com a brocha na mão fazendo as vezes de animador de auditório da cidadania, prefeito, juiz, defensor, prestador de serviços sociais, recriador esportivo, promotor cultural, etc. Tudo que a polícia pode produzir em qualquer lugar é sempre provisório, porque a polícia não muda consciência e vontade de ninguém, ela apenas altera a oportunidade de ocorrências de crimes, violências etc.
Jacqueline Muniz: ocupação do Complexo do Alemão
Sem investimentos em infraestrutura social e urbana nos territórios com histórico de disputas armadas, o trabalho da polícia, por melhor que seja a intenção, vira um enxuga gelo caro, um mais do mesmo para pior que imobiliza muito efetivo, gera escassez de policiamento no entorno dos territórios ocupados e no asfalto. E, ainda pior, abre espaço para o uso excessivo de força. A politicagem jogou fora a água do banho e junto a criança.
O programa de polícia de proximidade foi sabotado por dentro do próprio governo com sua ambição eleitoreira. Não havia, não há e nunca teriam recursos possíveis para tanta UPP. E não é preciso tanto gasto para produzir o resultado do controle do crime convencional e organizado. Não se tem como produzir gestão territorial só com PM, fazendo o papel de guarda de condomínio de favela. Era preciso um trabalho conjunto com as demais polícias, guarda municipal, corpo de bombeiros e, principalmente, a subprefeitura e a administração regional com um programa de longo prazo e em larga escala de provimento de serviços e bens essenciais a baixo custo para a população (luz, agua, internet, regularização fundiária, transporte, urbanização, etc.).
Segurança pública é entrar e sair, é circulação, deslocamento de pessoas, serviços, bens, direitos. Não é cerco, nem confinamento. Tampouco se tem como fazer segurança pública sem a participação e consentimento dos moradores. Não se entra e pisa no chão dos outros sem pedir licença, sem bater na porta. Senão todos batem a porta na sua cara, ninguém te dá um copo d’água. Senão tudo vira abuso de autoridade e desacato de autoridade. Uma verdadeira torre de babel que ninguém se entende. E a sociedade policiada que protege e defende o policial que a policia.
Ocupação no Alemão e Repressão ‘Miojo’
A imposição militar dobra vontade só no imediato, é uma repressão miojo lamen. Já a persuasão e negociação com o morador, soma vontades e gera estabilidade, rotina de policiamento, convivência pacífica. Uma coisa é se sujeitar a polícia que gera revolta e sabotagem. Outra coisa é obedecer às regras de convivência pactuadas para garantir a lei para todos e uma ordem de todos que gera adesão e cooperação. Sem isso, o que acontece é a síndrome do cabrito do sobe-desce morro que não controla território e nem população, animando a cabeça quente, o coração aflito e o dedo nervoso do tiro, porrada e bomba.
Por isso, é que toda ocupação policial tem prazo de validade. Porque para permanecer é preciso ser convidado a ficar, fazer por merecer. Já que o histórico passado era de encontros infelizes entre a polícia e o morador de favela. Não há como policiar de verdade sem adesão social, pois a sociedade é mais forte e tem todos os meios para inviabilizar o trabalho policial.
Polícia não expulsa sociedade do seu território, mas sociedade algema e expulsa a polícia que não tem condição de permanecer pela perda da confiança, da credibilidade, pela imagem deteriorada. Ninguém leva a paz de fora pra dentro. A paz é construída de dentro pra fora com o suporte do Estado e apoio da sociedade. Como cansei de avisar na época, se o programa de implantação das UPPs seguisse do jeito que seguiu, de forma eleitoreira, ultrapassando a capacidade operacional e orçamentaria instaladas, seria a principal avenida para a milicialização que cresceria. Como acabou acontecendo. Algo a se refletir neste 27 de novembro em que se completam 10 anos da ocupação do Complexo do Alemão.
Jacqueline Muniz é professora do Instituto de Estudos Comparados em Administração de Conflitos do Departamento de Segurança Pública da Universidade Federal Fluminense (DSP/IAC/UFFF)