Desenvolvimento em Foco

Outro mundo é possível. A transição ecológica por meio da permacultura

A prática da permacultura se difundiu por diversas partes do mundo e se mostra essencial para “virarmos a chave” da desigualdade e da narrativa da “abundância da escassez”

Annemarie Buchmann/Wikimedia/CC
Annemarie Buchmann/Wikimedia/CC

Pesquisas e projetos recentes sobre os conceitos emergentes têm demonstrado que uma radical ampliação da cobertura vegetal, em um sistema que articule pequenas áreas verdes nos espaços públicos e lotes urbanos (incluindo tetos e paredes verdes), fornece inúmeros benefícios aos moradores dessas áreas. Por exemplo, melhora no manejo das águas urbanas, mitigação dos efeitos das ilhas de calor, habitat para vida silvestre, melhora em diversos aspectos na saúde pública. Essas pesquisas raramente abordam a integração desses sistemas para o cultivo de alimentos, que pode ser enquadrado como permacultura.

A permacultura é uma das respostas às crises que se desenhavam no horizonte dos países industrializados, na segunda metade do século 20. A técnica é inspirada no modo de produção agrícola de países asiáticos, de onde vem o conceito da “agricultura permanente”, criada pelos australianos Bill Mollison e David Holmgren, nos anos 1970. A Ética e Princípios do Design elaborada por eles parte da articulação de uma série de ideias para a criação de sistemas agrícolas, com vistas a garantir o abastecimento alimentar a longo prazo. Trata-se de um contraponto à agricultura tradicional, a partir de 12 princípios, comuns aos conceitos emergentes.

Uma ação que parte da visão integral, horizontal e sistêmica traz à tona a importância da articulação de uma estrutura em rede, que coloque a dimensão social no centro da discussão de ética e do design, para tratar de uma ampla ação que pode contribuir com um plano de manejo socioambiental e de segurança alimentar.

Permacultura vira chave da desigualdade

A prática da permacultura se difundiu por diversas partes do mundo e se mostra essencial para “virarmos a chave” da desigualdade e da narrativa da “abundância da escassez”. Essa narrativa se vale de uma “doutrina de choque” para “acordar” (sic) medidas que colocam os Estados nacionais “de joelhos”. E, por conseguinte, toda estrutura social derivada dele.

As contradições da crise de oferta e demanda que vivenciamos, que se arrasta bem antes desta pandemia da covid-19, são consequência da drenagem e expatriação dos recursos públicos, por meio de processos dialeticamente combinados – de produção de riqueza a partir da produção e ampliação da pobreza na periferia. Esses processos se articulam de forma global (entre países do “centro” e da “periferia”) como uma máquina de produção e de reprodução de desigualdades, de pessoas enfermas (descartáveis) e de danos ambientais.

Um caso específico a ser destacado, dada a amplitude da transformação urbana e ambiental com a aplicação desses princípios aplicados a todo um país, é a transição realizada em Cuba nos anos 1990. Nessa época, o país também tinha sua economia calcada historicamente em monoculturas e dependente de mercados de exportação de produtos primários, superexploração do trabalho e de recursos naturais.

A transição ecológica em Cuba e a produção agrícola em áreas urbanas viveu um interessante paradoxo antes dos anos 1980. Na ocasião, havia uma agricultura mecanizada e uso intensivo de fertilizantes sintéticos, destacando a produção da cana-de-açúcar (monocultura). A maior cidade, Havana, que no início dos anos 2000 contava com pouco mais de 2 milhões de habitantes, respondia pela metade da produção das hortaliças no país. Pesquisadoras da Embrapa estudaram o caso dessa transição ecológica em 2001. E mostraram que a produção orgânica de alimentos saltou de 4.200 toneladas no ano de 1991, para 2 milhões em 2001.

Reflexos nas águas

A drástica mudança da produção agrícola, especialmente na cultura de cana-de-açúcar, entre as mais mecanizadas da América Latina e com uso intensivo de fertilizantes químicos até o final dos anos 1970, para a permacultura, mostrou reflexos nas águas de seus rios. Isso foi mostrado em uma pesquisa realizada por uma equipe científica cubana e estadunidense para avaliar o impacto da agricultura sustentável na qualidade da água dos rios centrais em Cuba. A pesquisa mostra que o uso reduzido de fertilizantes por hectare de terra cultivada resulta em boa qualidade das águas, em comparação com outros locais nos EUA.

Apesar das diferenças de Cuba para o Brasil, há lições que devemos tirar nesta crise de oferta e de demanda intensificada pela pandemia. O “novo normal” nos mostrou de maneira escancarada a necessidade de se produzir alimentos (hortifrúti tradicionais e Plantas Alimentícias Não Convencionais, Pancs) em áreas urbanas. São elementos chaves das novas concepções de planejamento e design ambiental.

A agricultura urbana cubana, pautada nos princípios da agroecologia, possibilita disseminar experiências de respeito ao meio ambiente (via reorientação de seu manejo), de busca da qualidade de vida (saúde) e de valorização dos conhecimentos. E de uma estrutura em rede “insurgente” e articulada pelo Estado, de intelectuais orgânicos inseridos na diversificação e disseminação da produção. A política de agricultura urbana e periurbana, por meio da Agroecologia e da Agricultura Sintrópica familiar pode ser implantada em qualquer bioma do mundo. Esta ação não é isolada de outras ações do Estado, como o Planejamento Urbano e Ambiental, Plano de Mobilidades, da Educação, da Formação Social, da Segurança Alimentar, da Saúde, da Geração de Emprego e Renda, etc., principalmente em um país onde a demanda das famílias é responsável por 60% do PIB.

Agenda 2030

O combate à fome é a segunda das metas estabelecidas para a Agenda 2030, da Assembleia Geral das Nações Unidas. Em uma situação de restrição de mobilidade e de fechamento, por exemplo, das escolas que vivenciamos, uma ação emergencial é fundamental, principalmente quando ficou evidenciado que muitas crianças dependem da alimentação da merenda, na hora do almoço, para sobreviver.

Não há lógica alguma em desmantelar uma rede de proteção social do Estado (Educação, Saúde e Previdência) e de combate à pobreza, como o Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea), para se manter uma estrutura que mantenha as distopias socioambientais e que conserve uma estrutura desigual. O “novo normal” da escassez que a pandemia nos impõe exige uma reação imediata de preservação da vida, do meio ambiente e das relações humanas. Antes que o processo de desumanização a que estamos sendo submetidos seja irreversível, como a discussão da “Economia de Francisco”, que será realizada em novembro de 2020, por uma rede colaborativa internacional que contará com humanistas como Muhammad Yunus, Amartya Sen, Frei Betto, Michael Löwy, Ladislau Dowbor, Joseph Stiglitz, Marcos Arruda, entre outros.

Há várias experiências que nos remetem a refletir que um outro “fim de mundo” é possível, onde haja uma articulação compartilhada que vise ao BEM COMUM. Com a dimensão social na ponta e na centralidade de todas as outras dimensões. E com administradores e gestores de diversas instituições e diferentes áreas do conhecimento. Além de pessoas que vivam e não se evaporem ao fim de uma longa jornada de trabalho e que devidamente também têm que ser convidadas para discussão, para a ação e, principalmente, para “a ceia”!

Leia outros artigos da série Desenvolvimento em Foco


Luis Felipe Xavier é professor e mestre em Planejamento Urbano e Regional pela FAU-USP (2009), docente do curso de Arquitetura e Urbanismo da Uscs e pesquisador do Observatório Conjuscs

Robson da Silva Moreno é professor e mestre em Estruturas Ambientais Urbanas pela FAU-USP (2004), doutorando em Planejamento e Gestão do Território pela UFABC e pesquisador convidado do Observatório Conjuscs 

Este ensaio é uma amostra da nota técnica n° 11, publicada (na íntegra), na 14ª Carta de Conjuntura (outubro/2020) do Observatório de Políticas Públicas, Empreendedorismo e Conjuntura da Uscs (Conjuscs)