Análise

Avaliação da dívida ativa da União e dos municípios do Grande ABC

A priorização da arrecadação da dívida ativa pode reduzir dificuldades de financiamento das políticas públicas neste momento de crise fiscal?

Pixabay
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O presente artigo analisa a dívida ativa da União e dos municípios do Grande ABC e busca responder a seguinte questão: em que medida a priorização da arrecadação da dívida ativa pode reduzir as dificuldades de financiamento das políticas públicas neste momento de crise fiscal?

A dívida ativa da União foi de R$ 2,4 trilhões em 2019, dos quais 73% de tributos não previdenciários (impostos, taxas, contribuições) e 67% referentes a grandes devedores, cujas dívidas superam R$ 10 milhões (Raio x Orçamento 2021 PLOA).

O número total de devedores existente em 2019 era 4.958.643. Desse total, 22.675 são considerados grandes devedores (0,45% do total) e são responsáveis por 2/3 do total da dívida – R$ 1,6 trilhão, enquanto os outros 4.935.968 devedores (99,55% do total) respondem por 1/3 – R$ 0,8 trilhão. Se houvesse uma cobrança efetiva desses devedores, mais da metade do orçamento federal fixado para 2021 poderia ser financiada pela dívida cobrada. Não é, todavia, simples a arrecadação desses valores, diante da existência de cadastros de contribuintes desatualizados, falta de planejamento da ação fiscal, falta de integração com os fiscos dos governos estaduais e municipais para compartilhamento de dados, dentre outros problemas.  É necessário também conhecer o perfil dos devedores para se avaliar a viabilidade de recuperação desses créditos.

Considerando a qualidade dos valores a receber, somente 32,6% do estoque da dívida ativa têm perspectiva concreta de serem recuperados e 53,2% são considerados irrecuperáveis, segundo a classificação realizada pela Procuradoria Geral da Fazenda Nacional (PGFN). Os valores considerados recuperáveis totalizaram R$ 794 bilhões – cerca de sete vezes os gastos federais com Ações e Serviços Públicos de Saúde (ASPS) em 2019. Segundo dados da PGFN, foram recuperados R$ 24,4 bilhões em 2019, equivalentes a 1% do estoque total (PGFN em Números). Se forem tomados como base os R$ 794 bilhões considerados recuperáveis, o resultado de 2019 terá representado 3% dos créditos. Não é, com certeza, um desempenho satisfatório.

Situação grave

Em dezembro de 2014, a União tinha R$ 1,4 trilhão inscritos na dívida ativa, distribuídos entre 3,5 milhões de devedores. Os grandes devedores eram 18,7 mil. O valor do estoque da dívida ativa da União em 2014 atualizado a preços de 2019 é de R$ 1,8 trilhão, o que evidencia um crescimento real de 33% no período 2014-2019. Da mesma forma, cresceu significativamente o número de devedores (40%) e de grandes devedores (21%), situação que nos permite inferir que é um bom negócio ser devedor do fisco. E isso ocorre não somente na esfera federal de governo, mas também nas esferas estadual e municipal.

No caso dos municípios do Grande ABC, a situação é mais grave que a federal: a relação entre o estoque da dívida ativa e a receita própria consolidada dos municípios do Grande ABC (228,0%) superou a mesma relação observada na União (184,6%), sendo que ficaram abaixo do percentual federal os municípios de Santo André (142,5%), São Caetano do Sul (108,3%) e Ribeirão Pires (74,8%) – é oportuno destacar que a relação de Mauá foi 734,2%.

O valor consolidado do Estoque da Dívida Municipal (EDA) do Grande ABC representou 5,43 vezes e 7,28 vezes em 2015 e 2019, respectivamente, os gastos municipais consolidados com ASPS (DS) financiados com recursos próprios no mesmo período. O município de Mauá foi o que apresentou maior razão “EDA/ASPS” no período analisado, isto é, os valores do estoque da dívida ativa em 2015 e 2019 foram, respectivamente, 12,21 vezes e 18,36 vezes as despesas com saúde com recursos próprios, seguido por São Bernardo do Campo (respectivamente, 7,08 vezes e 9,28 vezes). Os dois municípios que apresentaram menor razão “EDA/DS” em 2015 e 2019 foram Ribeirão Pires (respectivamente 2,04 e 1,33) e São Caetano do Sul (2,03 e 3,01).

Estoque da dívida

Segundo a Secretaria do Tesouro Nacional, os sete municípios que integram a Região do Grande ABC tiveram juntos, no ano de 2019, receitas correntes em um patamar superior a R$ 11,1 bilhões. Da mesma forma, é vultoso o valor devido pelos contribuintes aos municípios, que atingiu a casa de R$ 13,1 bilhões em 2019, R$ 2 bilhões a mais do que a receita corrente por eles realizada no mesmo exercício.

A comparação entre a receita própria e o estoque da dívida ativa em 2019 mostra que, à exceção de Ribeirão Pires e São Caetano do Sul, onde há um equilíbrio entre a receita própria e o estoque da dívida ativa, os demais municípios têm um estoque muito superior às suas receitas próprias. Em São Bernardo do Campo essa relação está acima de 230% desde 2015 e em Santo André supera os 140% nos últimos três anos; Diadema tem uma média superior a 300%, mas Mauá, por sua vez, apresenta a situação mais grave do Grande ABC: de 458,9% em 2016 e 485% em 2015, passou para 734% em 2019; e, por fim, Rio Grande da Serra que tem uma variação entre 146% e 344% no período analisado. Em termos consolidados, em 2015 e 2019, o estoque da dívida ativa representou 190,37% e 228,00% da receita própria desses municípios.

A existência de estoque elevado de dívida ativa nos municípios da Região do Grande ABC revela um quadro de problemas de gestão da receita municipal, como por exemplo: cadastros de contribuintes desatualizados, falta de planejamento da ação fiscal, falta de integração com os fiscos dos governos estadual e federal para compartilhamento de dados, a cultura de implementar programas de recuperação de débitos ‒ REFIS ‒ altamente benéficos aos devedores, com anistia de multas e dispensa de juros em detrimento dos cidadãos cumpridores de seus compromissos, dentre outros.

Mecanismos concretos

É inconcebível que a política fiscal dos governos municipais não priorize medidas para aumentar a arrecadação, principalmente por meio da intensificação da cobrança dos grandes devedores, no contexto da política econômica de austeridade fiscal do governo federal e da pandemia da covid-19, que aponta para uma redução de recursos federais a serem transferidos em 2021 para estados e municípios, especialmente na área da saúde, conforme proposta orçamentária da União para 2021 encaminhada ao Congresso Nacional.

Fica evidente também que há mecanismos concretos para o governo federal ampliar a arrecadação em 2021, inclusive para financiar o piso emergencial da saúde de R$ 168,7 bilhões proposto pelo Conselho Nacional de Saúde.


Versão adaptada da Nota Técnica de mesmo título publicada na  14ª Carta de Conjuntura (outubro/2020) do Observatório de Políticas Públicas, Empreendedorismo e Conjuntura da USCS (Conjuscs).

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Rubens Alves é economista e mestre em Administração pela FGV/SP, é auditor fiscal aposentado da PMSP e consultor em tributação e finanças públicas. Foi diretor do Departamento de Rendas da Prefeitura de SP.

Helder Alves é especialista em Administração e Mestre em Gestão e Políticas Públicas pela FGV/SP e consultor em gestão pública.

Francisco Vignoli é administrador público e mestre em Economia pela FGV/SP, é professor da FGV/SP e consultor em gestão e finanças públicas. Foi Secretário de Finanças de Santo André e de Diadema.

Francisco Funcia é economista e mestre em Economia Política pela PUC-SP, professor da USCS, Coordenador Adjunto do Observatório de Políticas Públicas, Empreendedorismo e Conjuntura da USCS e consultor em gestão e finanças públicas e em economia da saúde.