Desenvolvimento em foco

Afroempreendedorismo em meio à covid-19: uma relação de tensão econômico-histórica

Historicamente afetada por sequelas não reparadas da escravidão, a população negra é também mais afetada pela crise da covid-19. A tensão exige maior participação do Estado, no estímulo à empregabilidade e ao empreendedorismo

Coletivo Alma Preta/Divulgação
Coletivo Alma Preta/Divulgação

Uma das consequências do pós-escravatura negra no Brasil foi a manutenção de uma cultura racista entre brancos apoiada na política de imigração europeia, com vistas ao fortalecimento de um mercado de trabalho “livre” e um sistema educacional racialmente dividido. Constituindo dessa forma em um dos primeiros complicadores à ascensão social dos negros (soma de pretos e pardos) a base do conceito de “mercado de trabalho cindido” proposto por Edna Bonacich em A Theory of Ethnic Antagonism: The Split Labor Market. (Uma Teoria do Antagonismo Étnico: Divisão do Mercado de Trabalho). Esta nota, em que abordaremos aspectos do afroempreendedorismo, é uma síntese de artigo que publicamos na 13° Carta de Conjuntura do Observatório da USCS.

O mercado cindido operou para que os negros se mantivessem numa estrutura social em que as camadas inferiores tivessem baixíssima mobilidade social intergeracional. Isso garantiu aos brancos inserção e consolidação tanto na classe média, quanto na elite da classe trabalhadora. Além de reduzir as chances da população negra, o que em termos sociológicos ampliava a divisão racial do mercado de trabalho e consolidava um processo de estratificação social.

Desta forma, considerando a história do negro no mundo do trabalho e com a geração de renda, compreende-se a necessidade da criação de um marcador político que qualificasse produtos e serviços oferecidos pelos afro-empreendedores ligados aos movimentos sociais negros (ou não). Portanto, a ressignificação dos elementos simbólicos da cultura africana e afro-brasileira vai além da comercialização. E exige-se uma postura de oposição às ideologias históricas do branqueamento, da democracia racial e do racismo cordial, colocando como caminho possível um imaginário social positivo do “ser” negro no Brasil.

Afroempreendedorismo e consumo

Das condições desfavoráveis do mercado aos afroempreendedores e das especificidades de consumo e da experiência em não encontrar produtos e serviços que abrangessem as características culturais e físicas, fatos esses decorrentes de um mercado racializado e centrado na população branca. Portanto, o embate inicial no afroempreendedorismo é de ordem simbólica no consumo, e é efeito da pressão de uma pequena parte da população negra que melhorou o nível de formação, inseriu-se na atividade econômica produtiva e conseguiu mobilidade social ascendente, o que a impulsionou ao consumo de bens e serviços mais sofisticados.

A partir dessa melhora econômica da população negra no Brasil e constatável pela pesquisa do Instituto Locomotiva de 2018 apurou-se que 54% da população brasileira é negra, esta movimenta em torno de R$ 1,7 trilhão na economia nacional, em termos absolutos 14 milhões de negros possuem o seu negócio próprio e fazem circular em torno de R$ 359 bilhões em renda própria por ano. Sendo que os afroempreendedores e mercados afroconsumidores são mais frequentemente encontrados na Bahia, no Rio de Janeiro, em São Paulo e no Maranhão, e de estratégia ao enfrentamento à vulnerabilidade econômica e social.

Ações coletivas

Sob essas condições no Brasil o ativismo negro orientado para o mundo empresarial é relevante e impulsiona a organização de ações coletivas como as aceleradoras do Vale do Dendê, a BlackRocks e o Afrolab, a formação de fundos de investimento de suporte ao crescimento e a estruturação dos negócios a exemplo do Fundo Baobá. Portanto, a estratégia atual posta em marcha é a formação de redes de apoio para ampliar a visibilidade e a legitimidade a temática, garantir empregabilidade entre empreendedores negros e pautar a sociedade civil, o mercado e a agenda pública dos governos.

Agora ao se considerar os efeitos do racismo exposto por Almeida Jr. (2012) na distribuição territorial entre brancos e negros, e ligado ao entendimento de Monsma (2016) demonstra-se um panorama periférico verificável na América Latina e no Caribe. Dessa condição de localização da população negra nas periferias e do processo de racismo estrutural explica-se o porquê do risco de morte de negros ser 62% maior do que de brancos na cidade de São Paulo, da taxa de mortalidade por idade ser  9,6 para brancos, de 15,6 para negros e de 11,88 para pardos para 100 mil habitantes computados até a data de 24 de abril de 2020 (Secretaria de Saúde do Município de São Paulo, 2020).

Dificuldades

Dos efeitos negativos da gentrificação e das condições epidemiológicas da covid-19 sob a população negra depreende-se a diferença racial dos pacientes que vieram à óbito no município de São Paulo. O índice de mortalidade entre negros é de 54,78% e entre brancos, de 37,93%. Com o agravante de essa tendência de disparidade se processar em todas as faixas etárias e em todos os níveis de escolaridade. Destarte, a pandemia de covid-19 introduz um novo complicador ao já problemático fomento ao afroempreendedorismo, conformando uma situação de gestão que deverá ser conduzida em rede multicêntrica para o enfrentamento do choque de oferta, do choque de demanda e de choque financeiro em escala jamais vista.

Uma vez que os empreendedores negros possuem 23% dos seus negócios no setor de comércio e 21% são os mais afetados pela pandemia da covid-19. De acordo com o Sebrae (2020), 52,2% dos microempreendedores declararam não conseguir funcionar durante a pandemia, pois seu atendimento é apenas presencial. E 34,2% dos pequenos e médios empreendedores deram a mesma declaração. Esses indicadores demonstram, portanto, o panorama que enquadra e atinge diretamente os empreendedores negros.

Assim, os dados evidenciam que os afroempreendedores terão ainda mais dificuldades de gerenciar seus negócios frente a queda no faturamento em meio à crise econômica, destacando-se a relação direta entre a dificuldade de acesso ao crédito e o nível de capital de giro. Situação está relativamente a Sebrae (2020) indica que somente 29,3% dos microempreendedores tentaram empréstimos na crise e, entre os pequenos e médios foi de 48,3% sendo que na amostra dos entrevistados dentre os que solicitaram, apenas 14,2% obtiveram uma resposta positiva.

Fomentar o afroempreendedorismo

Posta a crise da covid-19, revela-se a necessidade da ação do Estado no fomento a projetos de afroempreendedorismo e do fortalecimento de legislações, ainda que na maioria das esferas ainda tratem dessa temática apenas no campo conceitual. Fato verificável em falhas de programação, de planejamento ou de dotação orçamentária a exemplo da Lei Estadual de São Paulo que trata de empreendedorismo negro.

Conclui-se que, sob as condições que já eram desfavoráveis ao grupo dos afroempreendedores identificáveis nos estudos de Sebrae (2016 e 2020) e Rama e Araújo (2020), agravada pela covid-1, o papel do Estado como fomentador mostra-se relevante. E este deve agir para reparação da tensão econômico-histórica negativa a que os negros foram submetidos no campo do trabalho e da renda no Brasil pós-escravatura. Desse contexto é que se deduz que as soluções passarão obrigatoriamente pela formação de redes entre empreendedores e governo que atuarão no design de ações públicas, em política tributária progressiva, no financiamento e na ampliação de acesso a serviços bancários de base digital e na edição de medidas regulatórias que acomodem as novas modalidades de trabalho. Em especial o trabalho remoto para a promoção socioeconômica população negra.


Sérgio Ricardo Gaspar é doutorando em Administração (FEI); mestre em Administração (USCS); Especialista em Gestão Pública (Unifesp); graduado em Gestão Pública (FGV) e em Administração Pública (UFOP).

Alessandra Santos Rosa é mestra em Administração (USCS); graduada em Economia (USCS); e diretora de Inovação em Hortolândia na Secretaria Municipal de Desenvolvimento Econômico, Trabalho, Turismo e Inovação.

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