Reflexões

Os 100 dias que abalaram meu mundo

Cem dias de quarentena! Vejo o mundo da janela e pela TV. Pelas telas do computador e do celular. Ninguém entra e ninguém sai da minha casa

Reprodução/Montagem RBA
Reprodução/Montagem RBA

Faz 100 dias que me encontro em quarentena, cumprindo orientação da Organização Mundial da Saúde (OMS) pelo distanciamento social. Cem dias! Havia mais de uma década que não permanecia tanto tempo em um único território e muito menos confinado em menos de 100 metros quadrados. Vejo o mundo da janela e pelos canais de TV. Recebo e envio informações e impressões pelas telas do computador e do celular. Ninguém entra e ninguém sai da minha casa.

Muita coisa mudou nesse tempo. A começar pelo próprio tempo: de calor para frio e de lento para rápido. Na verdade, o tempo voa entre as janelas do meu apartamento e vagueia pelos cômodos. Como eu a me exercitar. Um entra e sai tremendo, inclusive de frio. Lá fora, tudo parou por um tempo. Ninguém ia, ninguém vinha. Nem o vento, nem o tempo. Era só silêncio. Me dei conta da existência de vizinhos. Quantos eram, seus pratos preferidos, a hora do banho, as diferenças e os amores do casal e até a luta das crianças com a matemática.

Um sol passou a nascer todos os dias na janela do meu quarto e a despedir-se na varanda da sala. Lindo, pura luz num novo céu “desfumaçado” e sem objetos voadores como helicópteros, aviões, drones e balas perdidas. Vi nascer o Zoom e milhões de brasileiros que não existiam até então frente aos olhos do Estado. Sem escola, sem saúde, sem emprego formal, compunham o Brasil invisível da insensatez. Pelo auxílio social emergencial foram levadas às filas da Caixa, não sem serem expropriadas como sempre por hipócritas oportunistas, incluindo militares tão honestos.

Brasil da insensatez

Vi também surgir o novo, além do novo coronavírus, claro! Novos hábitos de higiene pessoal e distanciamento social. O Estado ressurge pelas unhas cravadas de constrangidos neoliberais tentando sobreviver ao maremoto de seu Estado mínimo. A garotada da bike e da moto aplicou a maior: uma greve mundial de “empreendedores”, exigindo um “patrão” e direitos, claro. Aprendemos que a hora que o bicho pega, não sobra um meu irmão! Só mesmo o velho e bom sindicato para proteger os mais necessitados e mais vulneráveis. Quem não tinha um, pagou mais caro na crise.

Além de mais novos, os jovens inovaram na crise: black lives matter ocupou ruas e praças esvaziadas pelo vírus e viralizou! Antigos monumentos em homenagem a caçadores de pessoas “invisíveis” ficaram para sempre na quarentena eterna da história, alguns deles enferrujando no fundo de um lago.

Lindo mais que o sol, foi ver a solidariedade vencer o egoísmo que teve que usar sozinho todo o papel higiênico que estocou no começo da pandemia. Horroroso, mais que as trevas, foi ver o fascismo atacar jalecos brancos e marchar encapuzado na Praça dos Três Poderes. Frente à reação de ao menos um desses três, o Weintraub fugiu e o Queiroz apareceu. Pelo menos isso. Oxalá seja esse um bom sinal da nova “normalidade”


Nilton Freitas é representante do sindicato global ICM (Internacional de Trabalhadores da Construção e da Madeira) na América Latina e Caribe


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