Novo cenário

Novo coronavírus tem impacto na doação de órgãos

Associação Brasileira de Transplante de Órgãos estima queda de até 70% na quantidade de procedimentos. Médicos relatam dificuldades

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Com a expansão do novo coronavírus pelo Brasil, mais leitos de UTI estão sendo destinados para pacientes com a COVID-19, o que representa um dos complicadores para a obtenção de órgãos para doação

Por Danilo Gomes, de O São Paulo – “Conseguir um órgão é um ato heroico. Sumiram os doadores, pois as pessoas ficaram em pânico por causa da COVID-19. Os critérios para a coleta de órgãos ficaram mais difíceis, e as equipes de captação não vão mais aos hospitais, só fazem a abordagem telefônica”.

O relato é de um médico que atua no transplante de órgãos em um hospital da rede estadual de saúde de São Paulo, estado onde estão 41% das cerca de 38 mil pessoas que esperam pela doação de um órgão no Brasil, conforme dados do Registro Brasileiro de Transplantes (RBT).

Por ano, são realizados no País aproximadamente 24 mil transplantes. Em 2019, segundo a  Associação Brasileira de Transplante de Órgãos (ABTO), foram realizados 6.283 transplantes de rim, 2.245 de fígado, 378 de coração, 173 de pâncreas e 104 de pulmão. A taxa de doadores efetivo cresceu 6,5% em comparação a 2018 e houve o percentual recorde de 60% na taxa de autorizações familiares para os procedimentos.

Em 2020, porém, o novo coronavírus impõe um panorama diferente. “A partir da chegada do vírus no Brasil, em março, houve uma diminuição muito grande na doação de órgãos, eu diria que em cerca de 70%. Certamente, muitos pacientes vão falecer na fila de espera, porque os transplantes diminuirão muito”, afirmou o médico José Huygens Garcia, presidente da ABTO, em entrevista ao O SÃO PAULO.

Menos vagas de UTI

Com a expansão do novo coronavírus pelo Brasil, mais leitos de UTI estão sendo destinados para pacientes com a COVID-19, o que representa um dos complicadores para a obtenção de órgãos para doação.

“Um médico não pode aceitar o órgão de um doador que teve uma morte por acidente vascular cerebral e que esteve na mesma UTI onde havia pacientes com a COVID-19, pois há chance de que o doador tenha tido contato com o vírus”, detalhou Garcia.

O presidente da ABTO conta que no Estado do Ceará, onde atua, alguns transplantes seguem sendo feitos, como os de fígado, mas não se sabe por quanto tempo. “Os hospitais daqui tem colocado o receptor do órgão em UTIs que não tenham paciente com a COVID-19, mas não sabemos se daqui há um mês ou uma semana, essas UTIs já não terão que receber pacientes com o novo coronavírus”, analisa.

Em muitos dos casos, o doador e a pessoa que necessita do órgão não estão no mesmo estado, e com a redução da quantidade de voos comerciais, em decorrência das recomendações de isolamento social, este tem sido outro complicador. “Às vezes, até existe o órgão, mas não se consegue mais transportá-lo em tempo hábil. Para alguns órgãos, este tempo é muito curto. O do coração, por exemplo, é de até quaro horas. O de um fígado, de até dez horas. O rim pode ser até 24 horas, por isso até que este é o órgão que mais viaja de um estado para outro”, explica Garcia.

Responsabilidade compartilhada

Em todo o País, a ABTO já recomenda que os médicos acrescentem no termo de consentimento para a realização do transplante um parágrafo, segundo o qual a pessoa a ser transplantada diz estar ciente da atual pandemia do novo coronavírus, que pode adquirir o vírus durante o procedimento de transplante e que também sabe “da possibilidade de que, em contraindo a doença, as medicações utilizadas para evitar a rejeição do transplante podem torná-la mais grave”.

“É preciso explicar para o familiar e para quem precisa do transplante que se a pessoa fizer o transplante, ela corre o risco maior de ter uma infecção pela COVID-19 no hospital. No caso de um paciente grave na fila, porém, o peso sempre vai prevalecer para a realização do transplante. Não há como não fazer o transplante, por exemplo, de um paciente com falência cardíaca, já que ele tem grandes chances de morrer se não for transplantado”, explica Garcia, detalhando ainda que transplantes que envolvem doadores vivos estão sendo suspensos em praticamente em todo o mundo.

Mas nem tudo por ser adiado

A ABTO já recomenda que se adiem todos os transplantes de tecidos, “exceto no caso de urgência de transplante de córneas”. Já os transplantes não emergenciais de córnea e pâncreas “podem ser postergados, mas não abolidos, pois, em certas circunstâncias, serão necessários ou possíveis”.

A Associação alerta que não devem cessar os transplantes de fígado, pulmão e coração, bem como os de rim, neste caso, com um alerta adicional.  “A suspensão [dos transplantes renais] acarretaria grande acúmulo de pacientes em lista de espera para diálise, que também irão sucumbir, caso essas vagas não sejam disponibilizadas. Pacientes em diálise também correm maior risco de aquisição de doenças virais, por dividirem unidades com aglomerados de pacientes, por quatro horas, três vezes por semana”, consta no comunicado da ABTO.

m médico que atua na rede pública de saúde de São Paulo disse a reportagem sobre os dilemas que têm enfrentado. “No hospital onde estou, optou-se por não parar de fazer os transplantes e avaliar caso a caso. Há determinados casos, porém, que se o doente não faz o transplante, a mortalidade é alta. Como alguém que faz diálise, por exemplo, e que já está com quase todos os acessos entupidos não fará o transplante? Se isso não acontecer em até seis meses, um paciente com esse perfil morre em 50% das vezes por outras causas. É como fazer um cara ou coroa na vida dessa pessoa”, desabafou.

Outra médica que também atua na rede pública comenta sobre a dificuldade do diálogo com quem está há tempos esperando por um transplante: “Até parece uma situação injusta com aqueles que estão na fila dos transplantes a muitos anos ou esperando cirurgias na fila do SUS. No entanto, para que os procedimentos aconteçam nessa época da COVID-19, precisaria haver uma retaguarda da UTI e de que as pessoas tivessem o mínimo de proteção. Se o sistema de saúde não tem como garantir que elas estejam protegidas, o transplante somente aumentará o risco de essa pessoa não sobreviver”.

Testagem dos cadáveres

José Huygens Garcia assegura que na maioria dos estados, diante da transmissão comunitária da COVID-19, os órgãos para doação somente têm sido aceitos pelas equipes médicas após a confirmação de que quem teve morte cerebral, o potencial doador, não está com o novo coronavírus.

“A central de transplante de cada estado deve acordar com o laboratório central para priorizar este exame, já que é algo que vai salvar vidas. Se for priorizado, o processo mais rápido. Aqui no Ceará está acontecendo em até dez horas. O prazo razoável é de até 12 horas. Somente depois do resultado, é que se marca a extração dos órgãos”, detalhou.

Médicos ouvidos pela reportagem disseram que no Estado de São Paulo o resultado desse teste para a COVID-19 tem demorado até três dias. “Imagine, você vai chegar para uma família, por telefone, e perguntar: ‘Você quer doar o órgão do familiar, pois tem uma pessoa precisando? Só que você vai ter que esperar três dias para sepultar o familiar”, disse um dos entrevistados.

Por quanto tempo esperar?

Garcia ressalta que todos estes trâmites precisam ser ágeis, dada a instabilidade do quadro de quem já teve morte cerebral. “O coração ainda está batendo e alguns órgãos ainda continuam funcionado, porque o corpo está sobre o efeito de medicação e no respirador, mas caso se retarde muito a retirada do órgão, há o risco de uma parada cardíaca e  de se perder todos os órgãos. Além disso, essa pessoa segue ocupando um leito de hospital”, comentou.

E essa é outra angustia do primeiro médico citado nesta reportagem: “Às vezes, pode não dar tempo de fazer esse transplante. Quando dá, o corpo do doador vai permanecer em uma estrutura de UTI, ocupar um respirador, usar droga vasoativa. Diante desse cenário de escassez de UTI, você tem este problema ético: é um cadáver, a pessoa está morta, mas seguirá na UTI esperando até que se retirem os órgãos”.

Posicionamento do Governo de São Paulo

O jornal O SÃO PAULO questionou a Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo sobre a adoção de protocolos especiais para os transplantes diante da pandemia do novo coronavírus.

A resposta da Secretaria, por meio de sua assessoria de imprensa, foi que “as equipes de transplantes seguem protocolos de triagem clínica dos potenciais doadores e realizando testes da COVID-19. Conforme protocolo do SUS, pessoas com diagnóstico de COVID-19 com menos de 28 dias da regressão completa dos sintomas não podem ser doadores de órgãos”.

Também houve questionamentos sobre o número de transplantes realizados nos hospitais da rede estadual no mês de março e a quantidade desses procedimentos que foram cancelados ou remarcados em razão da COVID-19. Até a conclusão da reportagem estes dados não foram fornecidos pela Secretaria de Estado da Saúde.