MÍDIA

Na guerra entre Bolsonaro e ‘Folha’, a democracia sobrevive na imprensa alternativa

Professor da UNB resume os fatos de "rabo preso" do jornal, analisa seu conflito com Bolsonaro e diz que veículos como a RBA, TVT e Brasil de Fato são a via democrática

A posição do jornal é que nossa ditadura foi uma "ditabranda", segundo o neologismo cunhado por Otávio Frias Filho para exaltar a delicadeza e a suavidade de nosso autoritarismo

Bolsonaro anunciou, em entrevista a Datena e depois em live, que vai cancelar todas as assinaturas da Folha de S. Paulo na administração federal. Também insinuou que pode perseguir os anunciantes do jornal.

Ele já havia atacado a Folha no ano passado, logo antes do segundo turno, quando reportagem de Patrícia Campos Mello expôs o esquema de disparos ilegais de mensagens do WhatsApp que sustentava sua campanha. Agora, está chateado com a cobertura sobre suas conexões com a execução de Marielle Franco.

É uma tentativa de calar vozes críticas a seu governo? Sem dúvida. E deve ser condenada com veemência.

No seu site, o jornal noticia as ameaças e logo abaixo apresenta o link: “Quer assinar a Folha? Saiba como”. A cada ataque, a Folha apresenta o apoio a ela mesma como a defesa da democracia e da liberdade de expressão.

Mas, antes de dar o passo de entregar 30 reais (pela versão digital) ou 115 reais (pela versão impressa) por mês para a família Frias, convém olhar com mais atenção para esse “bastião democrata”.

A Folha foi apoiadora de primeiro momento do golpe de 1964 e da ditadura militar. Colaborou intensamente com a Operação Bandeirante (Oban), um esquema paramilitar, embora sob comando do Exército, que torturou e matou dezenas de militantes da esquerda. A Folha cedeu furgões de entrega de jornais para o transporte dos prisioneiros para os centros de tortura.

Aliás, há aí um ponto de convergência entre o jornal e seu hoje desafeto que ocupa a presidência: a Oban, que a Folha tanto apoiou, era comandada pelo então major, depois coronel, Brilhante Ustra.

Vencida a ditadura militar, a Folha não foi capaz de fazer sequer um mea culpa hipócrita, como fez O Globo. Pelo contrário: a posição do jornal é que nossa ditadura foi uma “ditabranda”, segundo o neologismo cunhado por Otávio Frias Filho para exaltar a delicadeza e a suavidade de nosso autoritarismo.

Ao longo da Nova República, a Folha combinou cuidadosamente sua “independência” em relação aos governos, que sustentava sua pretensão à credibilidade com apoio mal-disfarçado à direita nas eleições e, sobretudo, participação ativa na construção do clima de opinião favorável à desnacionalização da economia, ao desmonte do Estado e à precarização do trabalho.

A recente campanha pela reforma da Previdência é um exemplo – na Folha, a cobertura foi absolutamente enviesada em favor do fim das aposentadorias, com a adesão acrítica aos dados reconhecidamente manipulados da equipe de Guedes e o silenciamento de todas as perspectivas críticas. Mas podemos pensar em todas as outras contra-reformas ou na defesa das privatizações (a cobertura da entrega do sistema Telebras e da Vale, no governo Fernando Henrique, tem lugar de destaque nos anais da vergonha jornalística).

A Folha deu também sua contribuição para o fim da Nova República. Cúmplice de primeiro momento da Lava Jato, fez campanha aberta pela derrubada de Dilma Rousseff e pela criminalização da esquerda política. Apoiou a intervenção nas eleições de 2018 que retirou Lula da disputa. Grande difusora da tese dos “dois extremos simétricos” no segundo turno, contribuiu desta forma para a vitória da extrema-direita fascistoide.

Não faço campanha pelo boicote à Folha. Há motivos que podem levar a assiná-la: as tirinhas de Laerte, as análises de Jânio de Freitas, crônicas de Duvivier, a necessidade de cumprir o ritual matinal de ler um jornal enquanto se toma o café da manhã.

Mas se a motivação é a defesa da democracia, há maneiras bem melhores de se empregar o dinheiro. É possível apoiar um dos portais da imprensa alternativa, que vivem com recursos escassos, sustentados pelo sacrifício de seus colaboradores. Apoiar a TVT, a Rede Brasil Atual, o Brasil de Fato. Entrar no Clube do Livro da Editora Expressão Popular e receber um lançamento todo mês – por apenas R$ 35 mensais.

A luta popular precisa mais do seu suporte do que a família Frias.

Luis Felipe Miguel é professor da Universidade de Brasília (UnB), coordenador do Demodê – Grupo de Pesquisa sobre Democracia e Desigualdades

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