Marcio Pochmann

A responsabilidade do parlamento submisso pela nossa desordem política

Multipartidarismo e domesticação do Legislativo resultam na falta de representação da sociedade no sistema politico atual

Marcelo Camargo/Agência Brasil
Marcelo Camargo/Agência Brasil
Parcela significativa do legislativo passou a ser cada vez mais domesticado pelo poder executivo, desde que atendido nos seus objetivos, com administração eficiente do orçamento público para a liberação de emendas parlamentares

Na sua obra de maturidade A República, Platão (428-348 a.C.), o grandioso filósofo da Grécia antiga, identificou a inadequação de personagens a determinadas funções como possível razão para a desordem política. De todas as funções, as três mais importantes exigiam compatibilidade objetiva para atingir a polis ideal, como no caso dos corajosos para a arte da guerra, os operosos para conduzir a economia e os sábios para o exercício da política.

Tomado isoladamente dos demais poderes da República, o legislativo brasileiro permite análise a respeito de sua desordem política. Pela perspectiva platônica que se referencia à relação de seus personagens às funções determinadas, constatam-se, pelo menos, dois aspectos centrais atuais a destoar à relação de sábios com o exercício da política no regime democrático.

Inicialmente, o próprio modelo político vigente cujo sistema eleitoral tem se apresentado antipartidário. Enquanto herança da ditadura que organizou a transição dos 12 anos do bipartidarismo (1966-1979) entre Arena (a Aliança Renovadora Nacional, partido do regime) e MDB (Movimento Democrático Brasileiro, partido da oposição consentida pelo regime), a experiência em curso do multipartidarismo (35 partidos atualmente existentes, sendo 21 com acesso ao fundo partidário, e 75 partidos em processo de legalização) tem alimentado a desordem política nacional.

Sem que o brasileiro possa votar diretamente em partidos, ideias e programas, a decisão eleitoral a prevalecer tende a se fundamentar no personalismo e valores de momento, absolutamente descartáveis no tempo, sem identidade longeva e descrédito crescente. Nada mais apropriado, inclusive, para a recorrente prática de salvadores da pátria, populistas e autoritários.

Nesse sentido, a reforma política decente e profunda que altere o sistema político nacional tem sido persistentemente postergada no tempo. O que tem sido realizado, em geral, respondem a problemas pontuais, quando não superficiais que aparentam mudar a aparência, sem alterar a sua essência antipartidária.

O segundo aspecto relacionado ao possível entrave entre personagens e o exercício de funções determinadas no Poder Legislativo brasileiro se encontra associado à profunda mudança no papel do parlamentar. Enquanto prevaleceu o artigo 67 da Constituição Federal da ditadura, o poder legislativo, entre 1967 e 1988, não teve prerrogativa de estabelecer emendas sobre despesas estabelecidas pela lei orçamentária proveniente do poder executivo, salvo autorização do orçamento e julgamento das contas da Presidência da República.

Com a Constituição Federal de 1988, o poder legislativo restabeleceu o princípio das emendas sobre despesas definidas originalmente pelo Poder Executivo, além de autorizar o orçamento e julgar contas da presidência da República. No artigo 166 da Constituição vigente, há, por exemplo, uma diversidade de emendas que passaram a ser impositivas, praticamente concedendo ao parlamentar o inédito exercício das tarefas de gestão dos recursos públicos federais.

Além disso, a generalização de múltiplas articulações, especialmente com poderes locais, estabelece preocupações desmotivadoras no tratamento das grandes questões nacionais. Quando elas aparecem, em geral motivadas pelo próprio poder executivo, através da profusão de medidas provisórias e projetos de leis e emendas à Constituição, a moeda de troca tem sido, em grande parte das vezes, estimulada pela própria autorização liberatória do caixa do governo federal para o atendimento das emendas parlamentares.

Com isso, parcela significativa do legislativo passou a ser cada vez mais domesticado pelo Poder Executivo, desde que atendido nos seus objetivos, com administração eficiente do orçamento público para a liberação de emendas parlamentares. Consta que a recente aprovação da deforma da previdência pública pela Câmara dos Deputados terminou sendo antecedida por emissão dilatada do diário oficial em emendas liberadas, mesmo que recursos parecem ter sidos deslocados do contingenciamento da educação.

A convergência entre o sistema eleitoral antipartidário e o papel de gestor dos recursos públicos por parte de parlamentares no Brasil tende a destoar à relação entre personagens e função determinada, segundo a perspectiva platônica da definição do que seria a causa da desordem política. Isso não significa, necessariamente, que políticos não sejam personagens sábios, mas talvez estejam no exercício das funções de políticos que se esperaria no regime democrático de representação da sociedade.


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