Política e religião

Pode o voto evangélico decidir estas eleições?

Não há – como querem crer algumas lideranças religiosas – uma associação direta entre “ser evangélico” e votar em Bolsonaro

Rovena Rosa/Agência Brasil

Candidato à Presidência Fernando Haddad durante encontro com pastores evangélicos em São Paulo

São Paulo – Os órgãos de impressa ao comentarem as pesquisas do Ibope afirmam que a queda de Bolsonaro é puxada pelo voto evangélico. A certeza de voto em Bolsonaro caiu 12% entre os evangélicos, a maior redução detectada na pesquisa.

O percentual de evangélicos tem ficado em torno dos 30% dos eleitores, conforme as pesquisas divulgadas durante esta corrida eleitoral. Este significativo contingente da população nestas eleições tendeu a expressar preferência pela candidatura de Jair Bolsonaro (PSL). No segundo turno essa preferência poderá ser determinante para a vitória deste candidato?

Pesquisadores afirmaram que a vitória de Collor sobre Lula no segundo turno provavelmente se deu em decorrência da atenção equivocada para o voto evangélico por parte da campanha petista. Estaríamos diante da mesma situação?

Ao analisar os dados chama a atenção que os outros itens em que se identifica desempenho destacado de Bolsonaro são situações em que há exatamente uma menor presença de evangélicos em relação à média da sociedade. Bolsonaro tem o seu melhor desempenho entre aqueles que recebem mais de 5 salários mínimos, pessoas com nível superior, do sexo masculino e residentes na Região Sul. Há uma questão importante aqui: os evangélicos não se caracterizam por terem mais homens, maior renda ou mais pessoas com nível superior, além da região Sul ser proporcionalmente uma das com menor presença de evangélicos. Quem seria, então, este evangélico “fora do padrão” que vota no candidato?

Não há – como querem crer algumas lideranças religiosas – uma associação direta entre “ser evangélico” e votar em Bolsonaro. Outras variadas questões sociais e demográficas influenciam na constituição deste voto, sendo que o perfil que se destaca deste eleitor indica para a possibilidade de que uma maior adesão entre evangélico passe por fiéis de Igrejas Tradicionais, pois estas possuem um maior percentual de pessoas brancas e de nível superior. Nas eleições de 2014 este eleitor também não votou em Dilma Rousseff.

O que se identificou nestas eleições foi primeiramente uma estagnação da rejeição de Bolsonaro após o atentando sofrido pelo candidato. Em seguida o seu crescimento se deu entre os pentecostais de forma significativa no início de outubro e agora vemos na pesquisa de ontem do Ibope o crescimento de Haddad entre os evangélicos, impactando também na diminuição entre os candidatos.

Uma pergunta a ser feita é o quanto a religião assumida é efetivamente um fator preponderante. Entre os mais pobres o percentual alcançado por Bolsonaro é bem inferior à média da população, segmento em que há maior presença de evangélicos. Até o levantamento realizado no dia 24 de setembro pelo Ibope Bolsonaro mantinha a liderança na rejeição entre os evangélicos, com 41%, enquanto Haddad (PT) aparecia com 33%.

O investimento da campanha de Bolsonaro foi significativo e ocorre há alguns anos. Já da parte de Haddad só veio a ocorrer a partir da segunda semana do segundo turno, quando o candidato se reuniu com pastores e lideranças evangélicas oriundas de dezenas de denominações diferentes. Da parte de Bolsonaro, como denunciou a Folha de S. Paulo, boa parte da munição se deu a partir das chamadas fake news, tendo o pastor Silas Malafaia um dos maiores propagadores ao lado dos membros da família Bolsonaro. Eles se mantêm na tecla religiosa, como no recente caso divulgado por um correligionário de Bolsonaro que afirmou ter Haddad jogado uma Bíblia no lixo. A resposta do candidato foi imediata e afirmou que a mesma foi furtada do palanque. O que chama a atenção neste episódio, além da denúncia ter sido feita por um deputado do mesmo partido de Bolsonaro, é a de dedicação que a sua campanha e seus apoiadores dão ao tema, esticando ao máximo uma história de pouca relevância para uma disputa à Presidente da República e que, mediante a “denúncia”, foi imediatamente refutada.

O mesmo pode-se dizer do Kit-Gay, maior Fake News do primeiro turno, que foi distribuída de forma massiva graças à rede de WhatsApp e via Facebook. Redes que potencialmente podem ter atingido 37 milhões de eleitores. Essas ferramentas parecem ter jogado um importante papel na corrida eleitoral, tendo sido direcionadas para públicos específicos, como no caso dos evangélicos. Além disso há notícias de caravanas de igrejas que apoiam comunidades no Nordeste e que organizaram eventos para denunciar o “perigo do comunismo” que representaria a eleição de um candidato do PT.

Vários líderes evangélicos midiáticos e pastores-deputados também manifestaram seu apoio a Bolsonaro, estabelecendo desta forma uma significativa rede de referência, mas que também possui amplo alcance por intermédio de suas empresas de comunicação e suas redes sociais. Também compartilham deste discurso – que se fundamenta em um conteúdo conservador e moral – uma série de grupos que ocupam a sociedade civil, alimentados por uma estrutura de disseminação de peças de campanha, que além do uso da tecnologia também possuem a organicidade de organizações centenárias reunindo tanto as cristãs, como também a Maçonaria e círculos militares. A estes somam-se movimentos recentes com forte atuação nas redes sociais que eclodiram nas manifestações públicas multitudinárias de 2013. Temos aqui uma interessante união de uma ampla diversidade de lógicas e práticas que estão presentes de forma orgânica e disseminada na sociedade, movimentos instituídos, movimentos sociais e instituições que convergiram em torno de um nome, aglutinadas fundamentalmente por um discurso que envolve pitadas de messianismo, a afirmação da violência como solução e a negação da diversidade, numa reatualização do mito da democracia racial.

Meu ponto é que a influência da religião é limitada e eivada pelos outros fatores que influenciam o voto (história, experiências, ideologias, situação socioeconômica etc.). É mais uma componente, importante para as eleições proporcionais, mas menos para as eleições para cargos majoritários. De um modo geral o “voto evangélico” seguiu a tendência geral e não garantiu a reeleição de praticamente a metade da bancada evangélica, num patamar similar à renovação geral da Câmara. Exploro isto neste artigo que escrevi com a jornalista Magali Cunha: “Nem a bancada evangélica resiste ao vendaval”.

Em relação a Bolsonaro, me parece não ser o fato de a pessoa ser evangélica de forma isolada, mas sim ser evangélica e ter nível superior e ter maior renda que define o perfil do seu eleitor. É o somatório destas características que configuram as pessoas que acabam por se decidir por votar nele, a religião é um elemento importante, pois cria uma narrativa que justifica o voto. Não só a religião, mas também e curiosamente, o uso da violência para acabar com a violência.

Sabendo da importância do religioso no convencimento de seu eleitor, Bolsonaro tem investido nesta frente, exatamente para fortalecer um “nicho eleitoral” e daí tentar conseguir ainda mais votos. Um elemento nesta estratégia foi a desidratação de Marina Silva no primeiro turno, também embalada por fake news. Em agosto ela trazia 15% do voto evangélico, caindo para 5% em outubro. Esta diminuição foi um pouco mais lenta do que a experimentada na população de um modo geral. Provavelmente estes votos migraram para Bolsonaro.

O que ocorrerá dentro das urnas em relação ao voto evangélico será uma incógnita, segundo a pesquisa de ontem há possibilidades para a campanha de Haddad avançar neste segmento e com isso reequilibrar a disputa. A larga vantagem de Bolsonaro sofreu uma queda, mas muito provavelmente ele manterá a maioria do voto evangélico, especialmente entre tradicionais, como Aécio teve em relação a Dilma. Esta predominância de Bolsonaro entre evangélicos tradicionais parece ser definitiva, porém, entre os pentecostais nem tanto. Neste caso a rejeição dos dois candidatos é similar e entre os pentecostais é que Haddad consegue o seu melhor resultado. Nas pesquisas do primeiro turno entre eles havia maior indecisão e o voto de Bolsonaro era menos consolidado.

A campanha ainda está curso e não é possível confundir o apoio de lideranças midiáticas com a massa evangélica que vota conforme a média da população. Os pastores que apoiam Bolsonaro podem apregoar e pregar o que quiserem, mas o que as pesquisas indicam é que não há uma “massa ignara” que obedece cegamente a seus líderes religiosos. Algumas situações parecem indicar que há, infelizmente, casos de coerção social, “voto de cajado”, mas em geral o que parece haver uma adesão voluntária a partir das informações disponibilizadas aos eleitores.

É importante lembrar que no Ibope foi perguntado quais seriam as três principais fontes que o eleitor considera para decidir o seu voto. “Informação de líderes religiosos” foi indicado por apenas 8% dos evangélicos. Os elementos que valem de uma forma geral para a população também valem para estes: notícias, conversas e debates entre candidatos. Infelizmente neste segundo turno Bolsonaro, por estratégia, optou por não participar de debates, reconhecendo que somente teria a perder ao discutir sobre propostas para o Brasil. Situação, no mínimo, lamentável para o ambiente democrático. Essa postura só sinaliza que a sua candidatura corre contra o tempo para conseguir a vitória, não espera o confronto de propostas, mas busca uma vitória que se dá pela ausência e pela propagação de chavões.

Em resumo e para concluir: o segmento evangélico é plural e não há grandes diferenças para o conjunto da sociedade. Conforme pesquisas recentes, o PT é o partido preferido por 29% dos brasileiros e entre os evangélicos ele é preferido por 25% (valor similar, no limite da margem de erro da pesquisa). As ações de desconstrução de Bolsonaro entre evangélicos feitas pelo PT poderão funcionar, começou tardiamente, mas têm sido feito. Nesta pesquisa Ibope a diferença entre os candidatos no segmento evangélico diminui em 10%, a certeza de voto em Haddad subiu em 6% e a de Bolsonaro recuou em 12%. A rejeição de Bolsonaro aumento em 6% e a de Haddad reduziu em 12%       

O momento impõe à campanha do PT a necessidade de desenvolver ações voltadas para este segmento, lembrando com Paulo Freire de que o diálogo ocorre com o diferente e não com o inferior. Há uma narrativa de segmentos religiosos e a valorização de determinados temas os quais não podem ser ignorados. Estabelecer uma construção democrática que ao mesmo tempo que entende o lugar do Estado Laico, também dialoga com amplos setores da sociedade com respeito na busca de consensos democráticos e para a promoção e a defesa de direitos. Nos anos em que o PT ocupou a Presidência demonstrou ser capaz disso, como no caso das discussões relacionadas à política sobre drogas ou na elaboração e execução das políticas públicas de proteção e defesa de crianças e adolescentes, por exemplo.

Há um desafio e há uma tendência, mas o jogo está em aberto neste sprint final da campanha. Para a candidatura de Haddad exige empenho e dedicação, pois não há um “destino manifesto” definitivo para Bolsonaro em relação ao voto evangélico “puro”. Na primeira pesquisa IBOPE no segundo turno os evangélicos representavam o segmento em que havia maior distância entre os candidatos, já na segunda pesquisa temos uma nova configuração e a maior distância, diminuída, passa a ocorrer em relação à renda.

Na ausência de debates entre os candidatos, cabe aos eleitores de Haddad entabularem conversas, considerando seriamente a importância que o voto evangélico possui para a decisão deste pleito. A campanha de Bolsonaro transparece que eles assumiram esta estratégia firmemente, resta saber como a campanha de Haddad a levará à frente. Por mais que um candidato queira passar a imagem de que já está com a “faixa na mão”, de fato temos todos envolvidos em uma intensa campanha, disputando voto a voto, com um especial direcionamento para o voto evangélico, o qual devido à sua organicidade possui uma maior velocidade de disseminação.      

*Alexandre Brasil Fonseca é professor associado da UFRJ. Doutor em sociologia pela USP com pós-doutorado pela Universidade de Barcelona. Autor de “Evangélicos e Mídia no Brasil” e de “Relações e Privilégios: Estado, secularização e diversidade religiosa no Brasil”.