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O dia em que Lula não se encontrou com Mandela

Terceiro encontro entre Lula e Mandela, em 2012, foi cancelado em razão do estado de saúde do líder africano. Um ano depois, Lula embarcaria de novo para Joanesburgo para acompanhar a cerimônia fúnebre

ricardo stuckert / instituto lula

2013: Lula, a então presidenta Dilma Rousseff e os ex-presidentes Fernando Henrique Cardoso, Fernando Collor e José Sarney

É realizada em Fortaleza a exposição internacional “Mandela: de Prisioneiro a Presidente”, comemorativa do centenário do nascimento de uma das maiores lideranças da história mundial. Uma frase célebre do líder africano destacada no catálogo do evento logo me chamou a atenção: “Se você falar com um homem numa linguagem que ele compreende, isso entra na cabeça dele. Se você falar com ele em sua própria linguagem, você atinge seu coração”.

De imediato, essa reflexão me fez lembrar de Lula e de uma história que vivemos há quase seis anos no seu Instituto: “Já conseguiram fechar a visita ao Mandela?”. As palavras de Lula ecoavam pelas salas e colocavam pressão sobre a equipe responsável por sua agenda. Era final de outubro de 2012 e a viagem do ex-presidente estava marcada para o dia 14 do mês seguinte, passando pela África do Sul, Moçambique e Etiópia. Quase duas dezenas de compromissos já estavam marcados, entre eles, audiências com os presidentes da República dos três países e a presidenta da União Africana.

Seria a primeira saída de Lula do país depois do tratamento contra o câncer na laringe detectado havia um ano, o que aumentava os cuidados na seleção de suas atividades.

A equipe percursora seguiu antes para Joanesburgo, o ponto inicial do roteiro. Nossa missão era realizar os trajetos internos e checar todas as atividades com os respectivos organizadores.

O roteiro estava costurado e arrematado. A visita a Nelson Mandela marcaria o clímax de toda a viagem e era o compromisso que mais nos preocupava.
Além dos encontros informais em eventos no Brasil e no exterior com a presença de outras lideranças, até então Lula havia se reunido oficialmente com o maior líder africano e mundial por duas vezes.

Na primeira, em 1994, pouco após Mandela assumir a presidência da República da África do Sul e meses depois de receber o Prêmio Nobel da Paz. Apenas quatro anos antes, ele estava em uma das prisões do odioso regime do apartheid, onde passou 27 anos de sua vida.

Lula, acompanhado de Vicentinho e Benedita da Silva, foi recebido no palácio de governo em Pretória. Era então candidato às eleições presidenciais brasileiras que ocorreriam naquele mesmo ano. Encontrar-se com o maior líder político mundial era uma enorme honra. Falaram principalmente sobre a extraordinária trajetória do líder africano que inspirava democratas do mundo inteiro.

Como Lula só assumiu a presidência do Brasil em 2003 e Mandela encerrou seu mandato em 1999, nunca iriam se ver numa situação em que ambos eram chefes de Estado.

O segundo encontro oficial entre eles ocorreu apenas em outubro de 2008, quando Lula, então presidente do Brasil, foi visitar Mandela em Maputo, capital de Moçambique, na residência de sua esposa, Graça Machel.

Quem estava lá conta que foi tudo difícil e confuso, havia muita gente para um local muito pequeno e poucos entraram na casa. Já com 90 anos, o líder africano estava aposentado e com a saúde bem debilitada. Falava baixo e devagar, por vezes ficava aéreo e distante. Em um momento, pediu a Lula que quando estivesse com Fidel Castro mandasse o seu abraço. Lembrou que “Cuba foi muito importante para nossa luta, foi muito solidário conosco”. Ao terminar a conversa, saiu à porta, se despediu do companheiro e acenou para a imprensa aglomerada na rua.

As fotos dos dois juntos correram o mundo, pois à época, já se falava que o brasileiro era a maior liderança não africana no continente, dada a importância que dava à África. Não por acaso, ao final de seu segundo mandato Lula iria completar mais de 30 viagens a países africanos.

O encontro que organizávamos em 2012 seria o primeiro a reunir os dois como ex-presidentes, na terceira viagem de Lula para a África depois de deixar a presidência do Brasil.

Então com 94 anos, Mandela já havia passado por várias internações hospitalares e não aparecia mais em público. Havia se retirado para a vila de Qunu, no Cabo Leste, sua morada na infância e onde desejava encerrar a vida junto aos seus familiares e próximo às sepulturas do pai e dos tios.

Era para lá que estava marcada a visita de Lula, a exigir de nossa equipe a montagem de uma intrincada operação de deslocamento com cerca de três horas de viagem por avião, carro e ônibus.

Assim que Lula chegou em Joanesburgo, dia 14 de novembro, perguntou se tudo corria bem para esse encontro. Foi quando contamos que Graça Machel pedira que telefonássemos nos dois seguintes para saber do estado de saúde do marido, pois ele não estava passando bem.

Preocupado, Lula insistiu para mantermos todo o esquema da viagem a Qunu e deu início à sua agenda no país.

A primeira atividade, logo na manhã seguinte, foi uma palestra no salão de convenções de um hotel com a presença de algumas dezenas de empresários e executivos africanos organizada pela sua empresa de eventos.

Depois da palestra e do almoço, seguimos numa viagem alucinada por uma estrada engarrafada em direção a Pretória, capital do país, para a reunião com o presidente Jacob Zuma, em sua residência oficial. Ele recebeu Lula e sua equipe nas escadarias do palácio e ambos conversaram por quase duas horas sobre as relações entre os dois países e a conjuntura mundial.

De volta ao hotel, fizemos novo contato com Graça Machel, que ainda não pôde confirmar a visita. Mandela seguia recluso, com problemas pulmonares e muito indisposto. Nossa inquietação aumentava.

Na manhã seguinte, acompanhamos Lula no encontro com algumas dezenas de jovens em um centro cultural da cidade, promovido pela Fundação Steve Biko. Fundador do Movimento da Consciência Negra, Biko foi um dos maiores líderes estudantis nos movimentos contra o apartheid, assassinado em setembro de 1977 pela polícia do governo racista. Criada em 1998, a Fundação é voltada para a formação de lideranças na juventude e uma parceira do Instituto Lula há mais de um ano.

À tarde fomos conhecer a histórica cidade de Soweto. Colada à Joanesburgo, foi palco das maiores manifestações antirracistas na década de 70, quando ainda era um bairro muito pobre onde era confinada parte da população negra de Joanesburgo.

É em Soweto que se situa a Mandela House Museum, criada em uma das casas onde o líder viveu antes de ser preso. Na visita, mais uma vez falamos com os responsáveis pela agenda de Mandela, que nos pediram ainda mais tempo para confirmar o encontro. A expectativa continuava.

No terceiro dia, na sede da Cosatu, a central sindical sul-africana, o ex-presidente foi recebido efusivamente por mais de uma centena de dirigentes que cantavam e dançavam em sua homenagem.

Naquele período eles travavam uma intensa discussão política que ameaçava rachar a Central e o CNA, o partido que governava o país. Uma parte considerável dos dirigentes da entidade defendia que o presidente Jacob Zuma deveria operar uma mudança em seu governo e viver seu “momento Lula”. Isso significaria usar como modelo para o país os governos de Lula.

Preocupado com as consequências que poderiam ser causadas por uma divisão da Cosatu, nosso ex-presidente então fez um discurso memorável. Nele, exortava os sindicalistas à unidade: “vocês que se uniram para conseguir uma vitória tão extraordinária e derrotar o apartheid, não podem se dividir agora”. Foi aplaudidíssimo e teve muitas dificuldades para deixar o local, tamanho era o assédio dos trabalhadores.

Mais tarde, já no hotel, Lula ainda receberia o ex-presidente Thabo Mbeki, sucessor de Mandela em 1999 e com o qual teve vários encontros quando ambos eram presidentes de seus países.

Foi após a partida de Mbeki, que veio a má notícia. Graça Machel dizia que sentia muito, mas o marido não passava bem e o encontro tão esperado teria que ser adiado. Como Lula já tinha compromissos posteriores definidos para Moçambique e Etiópia, não havia como resolver o impasse.

Entristecido pela condição de Mandela e a oportunidade perdida, Lula aproveitou a manhã seguinte para uma emocionante visita ao Museu do Apartheid e ao final da tarde embarcou para Moçambique.

Ao chegar a Maputo, recebeu um novo telefonema de Graça Machel. Ela estava na cidade para acompanhar a palestra de Lula e o convidou com sua equipe para um jantar em companhia de seus familiares.

A esposa de Mandela, além de uma das mais importantes ativistas dos direitos humanos de toda a África, era viúva de Samora Machel, morto em 1986, e primeiro presidente de Moçambique no período pós-colonial. Graça casou-se com Mandela em 1998, no final de seu mandato, e o acompanhava desde então. Hoje é viúva de dois ex-presidentes.

A palestra de Lula organizada pelo Centro de Documentação Samora Machel reuniu mais de 400 militantes de movimentos sociais e foi o ponto alto de nossa agenda moçambicana.

No jantar à noite, fomos recebidos por Graça, suas irmãs, filhas, genros e netos. Uma noite memorável, na qual um dos principais temas das conversas foi Nelson Mandela.

Depois de dois dias de agenda intensa em Moçambique, seguimos para Adis Abeba, capital da Etiópia, onde encerramos aquele circuito africano. Mas essa já é uma outra longa história.

Na viagem de volta ao Brasil, comemoramos o sucesso do roteiro, mas Lula não pôde deixar de lembrar da agenda cancelada com Mandela, sabia que a gravidade do seu estado de saúde não possibilitaria um novo encontro.

Em dezembro, um mês após nossa chegada ao Brasil, soubemos que Mandela havia sido internado novamente. Ficaria no hospital por 18 dias.

Um ano depois, no dia 10 de dezembro de 2013, Lula embarcaria de novo para Joanesburgo. Desta vez na companhia da presidenta Dilma Rousseff e dos ex-presidentes Fernando Henrique Cardoso, Fernando Collor e José Sarney. Iriam acompanhar a cerimônia fúnebre de Mandela. Cinco dias antes, o mundo inteiro já lamentava a morte de um dos maiores líderes da história da humanidade.

Na última semana, Mandela voltou a ser homenageado por todo o mundo. No dia 17, uma linda e tocante cerimônia comemorativa dos seus 100 anos de nascimento se realizou em um estádio lotado em Joanesburgo, com a presença do ex-presidente americano Barack Obama e de centenas de autoridades africanas e mundiais.

Lula não pôde comparecer, acabava de completar 100 dias de prisão. De Curitiba, escreveu uma mensagem publicada nas redes sociais. Nela, recordava as lições de luta e perseverança de Mandela e arrematava: “O ser humano não nasce odiando, ele é ensinado a isso. Então vamos ensinar as pessoas a serem mais justas, solidárias e sem nenhum tipo de preconceito”.

Para saber mais:

Exposição Mandela – de Prisioneiro a Presidente: Centro Cultural Dragão do Mar, em Fortaleza.

Lula, suas viagens e atividades voltadas para a África:

Conheça as atividades e leia o relatório da Iniciativa África do Instituto Lula

Recado do Lula: Mandela 100 anos; luta, perseverança e perdão podem curar os ódios de uma nação dividida

* Celso Marcondes, ex-diretor para a África do Instituto Lula, hoje membro do seu Conselho e conselheiro do Instituto África-Brasil.