Democracia mercantil

Poder econômico se apossou do Estado e barrou avanços civilizatórios

Os escândalos são fruto da natureza viciada da relação do Estado com o mercado. É necessária uma reforma política que democratize o voto e coíba o poder do dinheiro sobre Legislativo, Executivo e Judiciário

Arquivo/Senado

Durante a transição na década de 80, PMDB resgatou o espírito reformista, agora, é mais funcional para o mercado

Durante o período da ditadura civil-militar (1964-1985), os principais inimigos da democracia podiam ser simplificados pelos grandes capitalistas e pelo estamento dirigente estatal, ambos tementes das reformas civilizatórias prometidas no ciclo político do segundo pós-guerra (1945-1964). Por conta disso, as reformas de base apresentadas pelo governo Jango para conter o tipo de capitalismo selvagem estabelecido no Brasil foram brutalmente rompidas pelo golpe de Estado em 1964.

Ainda durante a transição para a retomada democrática, na primeira metade da década de 1980, o lançamento do programa Esperança e Mudança do PMDB resgatou o espírito reformista enquanto componente necessário para a transformação da relação transparente do Estado com o mercado e da atuação ética do estamento dirigente estatal. Mais de três décadas depois, a experiência democrática brasileira, a mais longeva de todas, se manteve distante da perspectiva de civilizar o capitalismo selvagem aqui instalado, e tampouco de estancar o patrimonialismo inserido no interior do Estado.

Sem reformas, o regime democrático se tornou funcional aos capitalistas, capazes de converter o sistema eleitoral numa espécie de negócio rentável. Enquanto os grandes capitalistas financiam privadamente o processo eleitoral, recebem em contrapartida um conjunto de benesses operado arbitrariamente pelo estamento dirigente estatal.

Dessa forma, o mercantilismo capitalista invadiu o certame eleitoral da escolha democrática da representação popular, acompanhado, em geral, de lucros extraordinários obtidos a partir do financiamento do sistema político. Do conjunto das delações recentemente tornadas públicas, percebe-se o quanto o poder do dinheiro não parece ter limites para os verdadeiros donos do Brasil.

Tudo parece estar à venda. Da compra de leis no Legislativo a pareceres e decisões no Judiciário, as aferições de fiscais e outras funções de interesse do Executivo. Mesmo as informações econômicas confidenciais são privilegiadas a poucos, o que faz o capitalismo de Estado funcionar ao reverso. Não seria mais o Estado a comandar o conjunto dos capitalistas, mas simplesmente o contrário.  

Nessa mesma perspectiva, o velho estamento dirigente nas mais distintas esferas do aparelho de Estado terminaria o utilizando para o seu fim próprio. Parcela do estamento segue recebendo remunerações acima do limite constitucional, o que torna atual a velha máxima: “para os amigos tudo, os inimigos a lei”.

Para resolver o descrédito que se generaliza, é necessária a realização da reforma política que democratize o voto, coíba o poder do dinheiro e facilite a formação de convergência para maioria partidária. Na sequência, o desencadeamento das eleições gerais.

Conforme experiências passadas, o Brasil cresce justamente no interior das dificuldades. São elas que forçam a adoção de soluções até então inimagináveis.  

Talvez por isso os escândalos que na atualidade proliferam possam revelar não apenas a natureza viciada da relação do Estado com o mercado como também os laços do patrimonialismo ainda presente no estamento estatal dirigente. Em plena crise, a mais amarga de sua história republicana, a recuperação do elo perdido das verdadeiras reformas prometidas no ciclo democrático do segundo pós-guerra (1945 – 1964) permite conectar o momento atual com uma perspectiva de futuro diferente da democracia mercantil e do patrimonialismo do estamento estatal.  

Marcio Pochmann é professor do Instituto de Economia e pesquisador do Centro de Estudos Sindicais e de Economia do Trabalho, ambos da Universidade Estadual de Campinas.