Poderes

A República estilhaçada e a falência do STF

Juízes do Supremo devem saber que não são deuses e que não estão acima do debate e do escrutínio da opinião pública

Arquivo/EBC

STF demonstrou que não é capaz de exercer o controle constitucional e está a serviço de um governo falido

GGN – Uma república se sustenta sobre a funcionalidade do tripé dos três poderes – Executivo, Legislativo e Judiciário – conforme o estabelecido na Constituição. Nas últimas semanas, a república brasileira veio abaixo com o desmoronamento do último poder que ainda mal subsistia: o Judiciário. Fruto de um golpe, o Executivo, sem legitimidade não podia ser considerado um poder republicano desde a posse de Temer. Além da ilegitimidade originária, esse governo era e é inaceitável pelo seu caráter criminal. Se alguém ainda duvidava de que se tratava de uma quadrilha, as delações dos executivos da Odebrecht acabam de desvelar qualquer dúvida. A principal missão desse governo é a de investir com violência contra os direitos sociais e contra o espírito e a letra da Constituição de 1988.

O Congresso, na sua dupla composição – Câmara e Senado – foi o principal fautor do golpe. Por serem casas comandadas por pessoas acusadas de cometer vários crimes, sendo que um de seus dirigentes, Eduardo Cunha, está preso e com denúncias graves pesando sobre os ombros de vários membros, o Congresso não tem respeito e legitimidade junto à sociedade. As delações recentes mostram que a soberania da representação popular foi vendida, privatizada, vilipendiada, conspurcada, ao sabor dos interesses privados de empreiteiras e de outros grupos que compram leis, favores e benefícios. Não há como considerar que esse Congresso seja uma instituição republicana, pois ele é a face perversa da destruição da res publica.

Por fim, ruiu o Judiciário na sua figura maior, o Supremo Tribunal Federal. Esta casa não tem uma história honrosa da qual possa se orgulhar. Deu cobertura ao golpe militar de 1964, validou medidas inconstitucionais do governo Collor e se acovardou perante a falta de amparo constitucional ao impeachment da presidente Dilma. Ademais, o poder Judiciário, pela sua incompetência, pela sua morosidade e por aplicar uma Justiça enviesada contra os pobres, contra os negros e contras as mulheres é portador de um enorme déficit de republicanismo.

A desmoralização do STF

No caso Renan Calheiros, o STF foi desmoralizado e se desmoralizou. Demonstrou que não é um tribunal capaz de exercer o controle constitucional e que está a serviço dos interesses de um governo falido, que não governa o país. Lula tinha toda a razão quando afirmou que estamos diante de um “Supremo acovardado”. Aceitou todo tipo de pressão política e terminou promovendo a mais esdrúxula das decisões já promovidas pelo STF. Ora, se o Tribunal pôde tirar Cunha da presidência da Câmara podia tirar também Renan da presidência do Senado. E se Renan pode ser presidente do Senado não há nenhuma justificativa razoável e lógica para que não possa ficar na linha de sucessão da presidência da República. Presidência da República e presidência do Senado (e do Congresso) são poderes equivalentes e equipotentes nos termos da doutrina republicana, embora com funções diferentes. Se Renan não pode ficar na linha de sucessão da presidência da República não pode ser também presidente do Senado.

Confrontado pela rebelião de Renan, o STF se recolheu desmoralizado. O STF não está agindo como colegiado. São nove homens, duas mulheres e nenhum destino, nenhuma dignidade, nenhum espírito de Corte Constitucional, nenhuma sobriedade, nenhuma cautela, nenhuma prudência. Os juízes, Gilmar Mendes à frente, são juízes apenas pelo poder formal que lhes é conferido, mas não são juízes nas suas condutas e nos seus conteúdos. Na prática, como juízes, são porta-vozes de interesses políticos, e como militantes políticos, julgam extrapolando o amparo da Constituição.

Os juízes de um tribunal, que é o guardião da Constituição democrática e republicana de um país, precisam ter condutas e decisões cuidadosas e cautelosas. Os juízes e o colegiado devem, por terem o poder de decisões finais e irrecorríveis, conduzir-se pelo recato, pelas auto-restrições, pelo autocontrole, pelo comedimento, tanto nas suas relações pessoais quanto no exercício de suas funções. Mas não é isto o que se vê. Dominados pela vaidade e pela frivolidade perigosa de suas incontinências verbais, são agentes da desmoralização do próprio STF. Os juízes devem saber que não são deuses e que não estão acima do debate e do escrutínio da opinião pública. Deveriam saber que não podem negociar decisões judiciais com Temer, com senadores ou com quem quer que seja.

Qual a saída?

A pesquisa do Datafolha, publicada no final de semana, é devastadora para o governo Temer. Os seus dias devem ser abreviados pela renúncia. Se não renunciar deve ser derrubado pelas mobilizações de rua. A única saída que esta crise comporta são as eleições gerais antecipadas. Nenhum governo que emergir desse processo que tem o golpe como elemento gerador terá legitimidade e capacidade para tirar o país da crise. Nenhum governo que não nascer da soberania do voto popular tem a legitimidade para pedir sacrifícios a quem quer que seja.  Não se pode reduzir direitos, definir tetos, agredir o pacto social da Constituição de 1988. Os democratas e progressistas tem o dever e a responsabilidade de levar bandeira das eleições gerais para as ruas imediatamente. É incompreensível que o PT e as esquerdas não tenham desfraldado esta bandeira desde o afastamento de Dilma.

O PT e as esquerdas precisam dizer claramente qual a saída que defendem em face da derrocada das instituições republicanas. Partes das bancadas do PT não podem continuar se comportando como a quinta coluna do governo golpista, como se comportaram na eleição de Rodrigo Maia, no episódio de Renan Calheiros e na falta de combate à PEC do teto.

O fato é que setores do PT e parte da intelectualidade progressista estão com uma estratégia equivocada. Após a consolidação do golpe “branquearam” a luta contra o governo e transformaram o judiciário e a Lava Jato em inimigos principais, num jogo conveniente não só para o governo Temer, mas até mesmo para o PSDB. O poder Judiciário e a Lava Jato precisa ser criticados e contidos nos seus excessos, mas não são um poder disputável. Somente o poder político é um poder disputável pelas forças políticas e sociais.

O colapso do Executivo, do Legislativo e do Judiciário produziu uma agenda democrática e progressista unificadora: eleições gerais já; não à PEC do Teto e não à reforma da Previdência. Não que o ajuste fiscal e a reforma previdenciária não sejam necessários. Mas não estes que estão aí, que jogam o peso da crise nos ombros dos mais pobres. As reformas que estão aí são impositivas e antidemocráticas. Não há o que negociar. As estruturas de mediação democráticas e republicanas foram rompidas. Elas só podem ser reconstituídas pelo processo social, pela mobilização popular nas ruas e pelas urnas.

Aldo Fornazieri é professor da Escola de Sociologia e Política