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Utopia, cinco séculos e muita atualidade

A falta da utopia nos dias de hoje, talvez, ajude a entender como a preocupação com o bem comum está distante dos interesses dominantes

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Mesmo que distante dos dias de hoje, a utopia segue essencial à fundamentação do sentido da vida humano

“É minha convicção firme que uma distribuição segundo critérios de equidade ou uma planificação justa das coisas humanas não é possível sem eliminar totalmente a propriedade privada. Enquanto ela subsistir, estou convencido de que há de continuar sempre a haver, entre grandíssima parte da humanidade e entre a melhor parte dela, o fardo angustiante e inelutável da pobreza e da miséria.”

“Se todos trabalhassem, a carga horária diminui para todos. Havendo seis horas apenas para trabalhar, esse tempo é suficiente para produzir bens abundantes que bastem para as necessidades e que cheguem não apenas para remediar, mas até sobrem.” (Thomas Morus, 1516)

Após cinco séculos de sua publicação, o livro Utopia (Optimo Reipublicae Statu deque Nova Insula Utopia) de Thomas Morus (1480 – 1535) segue extremamente atual. Por um lado, por sua contundente crítica à sociedade da época, especialmente a Inglaterra, por conta das perseguições religiosas, das injustiças diversas, dos roubos de variadas espécies, da opressão do trabalho e do avanço da miséria em meio à riqueza acumulada por poucos e geradora de abismos crescentes entre as classes sociais.

Por outro, a perspectiva da construção de uma sociedade alternativa, a República da Utopia, se daria por meio da liberdade religiosa, punição à intolerância e fanatismo, democracia realmente representativa e felicidade independente da propriedade privada e do dinheiro. A Utopia, o neologismo criado por Morus, em 1516, constituiria uma espécie de não lugar, cuja ideia generosa de sociedade ideal indicaria a sua inexistência.

Nesse sentido, a utopia se concretizaria toda vez que o desejo superasse a esperança. Ela, a esperança, poderia ser até irrealizável, porém, se constituiria no modo pelo qual o desejo se tornaria a força a mover individual ou coletivamente uma sociedade.

Por conta disso e apesar de mais de 200 anos após a sua publicação, o livro de Thomas Morus terminou sendo redescoberto, estimulando o nascimento do movimento socialista em pleno século 19. Pela perspectiva de Saint Simon (1760-1825), Robert Owen (1771-1858), Charles Fourier (1772-1837) e Pierre Proudhom (1809-1865), entre outros, o socialismo utópico renovou as bases de uma sociedade alternativa à selvagem expansão do capitalismo europeu.

A divergência aos socialistas utópicos permitiu que a idealização do socialismo na perspectiva científica, cujo principal expoente segue sendo Karl Marx (1818-1883), que compreenderia como possível a superação do capitalismo pelo modo de sociedade superior. Isso tenderia a correr justamente onde as sociedades capitalistas estivessem economicamente mais avançadas.

Mas no século 20, o que se constatou foi que o conjunto das experiências de socialismo real transcorreu nas sociedades capitalistas atrasadas, não nas mais avançadas.

Como a mudança passível de ser realizada pelo ser humano tende a transcorrer por organização de vontade própria ou coletiva, a concepção de Morus da imaginação de uma sociedade perfeita segue apropriada. Assim como Platão (427-347), que construiu a concepção imaginária na tentativa de mover a sociedade para além do cotidiano do curtoprazismo, conforme a publicação A República, autores como Tommaso Canpanella (1568 – 1639), através de A cidade do Sol seguiram na mesmo direção, entre outros.

É claro que o livro não muda a realidade, pois quem pode modificá-la é o ser humano. O livro, contudo, pode modificar o ser humano, e este, a realidade.

Mesmo que distante dos dias de hoje, a utopia segue essencial à fundamentação do sentido da vida humano. A sua falta nos dias de hoje, talvez, ajude a entender como a preocupação com o bem comum está distante dos interesses dominantes.

Marcio Pochmanm é professor do Instituto de Economia e pesquisador do Centro de Estudos Sindicais e de Economia do Trabalho, ambos da Unicamp

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