'Você esteve dentro de mim'

A incrível carta de uma sobrevivente a quem a estuprou

'Se uma garota cai, ajude-a a se levantar. Se estiver bêbada demais para andar, e por isso cai, não suba em cima dela, não a arqueie, não tire a calcinha nem enfie a mão na vagina dela'

Reprodução

Estudantes da Universidade de Stanford protestam: “Estupro aconteceu aqui”

B. me enviou este email: “Você deve estar a par do caso da americana que foi estuprada por um nadador em Stanford, cujo caso teve veredito há poucos dias e que tem causado furor pelo fato de tanto o cara quanto o pai dele declararem que acham um absurdo serem condenados ‘por tão pouco’.  Pois então, a garota que sofreu a violência escreveu uma longa carta a respeito do caso. Achei o texto um documento fortíssimo e que, apesar de um tanto quanto prolixo, mereceria uma divulgação para reflexões em tempo de frotas e gentilis e culturas do estupro. Portanto, tirei algumas horas do meu dia hoje para traduzir o texto para o português. Seria uma maneira de dar minha pequena e anônima contribuição pela luta do fim da cultura do estupro”.

Muito obrigada, B. O texto é realmente longo, quase interminável, mas é poderoso pra caramba (tanto que o site que publicou a carta teve 4 milhões de acessos em poucas horas, tanto que a carta será lida na íntegra no Congresso dos EUA, e tanto que ela pode afetar a legislação americana em casos de estupro). Vocês precisam ler o que essa vítima, que não quis se identificar, escreveu. Ela leu esta carta formidável durante o julgamento do cara que a estuprou.

Nota do editor

Na carta, a garota desfere argumentos contundentes sobre o crime e seus desdobramentos. Desqualifica a conduta covarde do agressor, que não assume seu erro e tenta safar-se com alegações dissimuladas, concentrando a responsabilidade pelo ato em parte no álcool, em parte na própria vítima. Relata o impacto da violência em sua vida. E denuncia a leniência com a cultura do estupro presente na conduta do Estado, ao avaliar seu caso.

Leia carta na íntegra no blog Escreva, Lola, Escreva.
Abaixo, selecionamos alguns trechos:

Excelência, se possível, gostaria de me dirigir, na maior parte desta declaração, diretamente ao réu. 
Você não me conhece, mas você esteve dentro de mim, e é por isso que nós hoje estamos aqui
(…)
Ele disse que perguntou se eu queria dançar. Aparentemente eu disse sim. Ele perguntou se eu queria ir até o quarto dele e eu disse sim. Depois ele perguntou se ele poderia enfiar o dedo em mim e eu disse sim. A maioria dos caras não pergunta “posso enfiar o dedo em você?”. Normalmente essa é uma progressão natural das coisas, uma evolução consensual, não uma sessão de perguntas e respostas. Mas aparentemente eu dei permissão total. Ele é inocente.
Mesmo nessa história praticamente não há diálogo; eu disse apenas um total de três palavras, sim sim sim, antes de ele me por seminua no chão. Eu nunca tinha sido penetrada após três palavras. No futuro, se você estiver confuso sobre se uma garota pode consentir, veja se ela consegue falar uma frase completa. Você não poderia nem fazer isso. Apenas uma sequência coerente de palavras. Onde estava a dúvida? Isso é senso comum, decência humana.
De acordo com ele, a única razão pela qual estávamos ao solo era porque eu caí. Nota: se uma garota cai, ajude-a a se levantar. Se ela estiver bêbada demais para andar e por isso cai, não suba em cima dela, não a arqueie, não tire a calcinha nem enfie a mão na vagina dela. Se uma garota cai, ajude-a a se levantar. Se uma garota estiver usando um casaco de lã sobre o vestido, não tire o casaco dela de forma a poder tocar os seios dela. Talvez ela esteja com frio, talvez seja por isso que ela está de casaco.
(…)
Em vez de o advogado dizer “você notou alguma escoriação?”, ele disse “você não notou nenhuma escoriação, certo?”. Era um jogo de estratégia, como se eu pudesse ser enganada sobre meu próprio valor. A violação sexual tinha sido tão clara mas, em vez disso, aqui estava eu no julgamento tendo que responder a questões como:
Qual sua idade? Qual seu peso? O que você comeu naquele dia? Então o que você teve no jantar? Quem fez o jantar? Você bebeu durante o jantar? Não, nem mesmo água? Quando você bebeu? Quanto você bebeu? De onde você bebeu? Quem te deu a bebida? Quanto você normalmente bebe? Quem te levou até a festa? A que horas? Mas onde exatamente? O que você vestia? Por que você foi àquela festa? O que você faria quando chegasse lá? Tem certeza de que fez isso? Mas a que horas você fez isso? O que esse SMS quer dizer? Com quem você trocava SMS? Quando você urinou? Onde você urinou? Com quem você urinou do lado de fora? O seu telefone estava no silencioso quando sua irmã te ligou? Você se lembra de ter colocado no silencioso? Sério, porque na página 53 eu gostaria de ressaltar que você disse que estava ajustado para tocar. Você bebia na faculdade? Você disse que era louca por festas? Quantas vezes você desmaiou? Você costumava frequentar festas de fraternidades? Você tem um relacionamento sério com seu namorado? É sexualmente ativa com ele? Quando começaram a sair? Você trairia? Tem histórico de traições? O que você quer dizer quando diz que gostaria de recompensá-lo? Você se lembra que horas você acordou? Você estava vestindo seu casaco de lã? De que cor era seu casaco? Você se lembra de mais alguma coisa daquela noite? Não? Ok, deixaremos Brock preencher o resto
(…)
Minha independência, minha alegria natural, minha gentileza e meu estilo de vida estável tornaram-se distorcidos a ponto da irreconhecibilidade. Tornei-me fechada, raivosa, auto-depreciativa, cansada, irritada, vazia. O isolamento era por vezes insuportável. Você não pode devolver a mim a vida que eu tinha antes daquela noite. Enquanto você se preocupa com sua reputação destroçada, eu refrigerava colheres toda noite para quando eu acordasse, e meus olhos estivessem inchados de tanto chorar, eu colocá-las sobre minhas pálpebras para diminuir o inchaço e me permitir enxergar. 
Aparecia com uma hora de atraso no trabalho toda manhã, saía para chorar nas escadas, posso te contar todos os melhores locais para chorar naquele prédio onde ninguém pode te ouvir. A dor tornou-se tão forte que tive que contar detalhes particulares a minha chefe para que ela entendesse por que eu estava saindo. Precisava de tempo porque o dia a dia não era mais possível. Usei minhas economias para ir até onde eu poderia ir. Não voltei a trabalhar em tempo integral porque sabia que precisaria de semanas no futuro para o julgamento. Minha vida parou por um ano, minha estrutura desabou.
(…)
Não consigo dormir sozinha à noite sem uma luz acesa, como uma criança de cinco anos, porque tenho pesadelos de ser tocada onde eu não posso acordar, fiz isso de aguardar até o sol nascer e me sentir suficientemente segura para dormir. Por três meses fui dormir às seis horas da manhã.
Infelizmente, após ler a declaração do réu, estou extremamente desapontada e sinto como se ele tivesse falhado em demonstrar remorsos sinceros ou responsabilidades sobre sua conduta. Respeitei totalmente seu direito a um julgamento, mas, mesmo após doze jurados lhe terem condenado por três crimes, tudo o que ele pode admitir foi ter ingerido álcool. Alguém que não consegue assumir responsabilidades por suas ações não merece uma sentença mais branda. É profundamente ofensivo que ele tente diluir o estupro com uma sugestão de promiscuidade. Por definição, estupro não é a ausência de promiscuidade, estupro é a ausência de consentimento, e me perturba profundamente que ele nem mesmo consiga ver essa diferença.
(…)
O oficial de justiça levou em consideração o fato de que Brock perdeu uma bolsa de estudos para atletas conseguida a duras penas. Quão rápido Brock nada não diminui a severidade do que aconteceu comigo, e não deveria diminuir a severidade de sua punição. Se um infrator de primeira viagem oriundo de uma classe social desprivilegiada fosse acusado de três crimes e demonstrasse nenhuma responsabilidade pelas suas ações a não ser ter bebido, qual seria a sentença dele? O fato de que Brock era um astro do esporte em uma universidade prestigiosa não deve servir como direito à leniência, mas como oportunidade para enviar uma mensagem cultural forte de que violência sexual é ilegal independentemente de classe social.
O oficial de justiça declarou que este caso, quando comparado com outros crimes da mesma natureza, pode ser considerado menos grave devido ao grau de intoxicação do réu. Pareceu grave. É tudo o que tenho a dizer.
(…)
O que Brock tem feito para demonstrar que ele merece escapar dessa? Ele só pediu desculpas por ter bebido e ainda precisa definir o que fez comigo como estupro. Ele tem me vitimizado continuamente, sem parar. Ele foi considerado culpado de três crimes e é hora que ele aceite as consequências de seus atos. Ele não será liberado silenciosamente.
Ele terá um registro como estuprador para sempre. Isso nunca expira. Como o que ele fez comigo nunca expira, não vai embora depois de um determinado número de anos. Fica comigo, é parte da minha identidade, mudou para sempre a maneira como lido comigo mesma, a maneira como viverei o resto da minha vida.
(…) 
Como disse Anne Lamott, “faróis não correm por toda a ilha procurando barcos para salvar; eles apenas ficam lá, brilhando”. Embora eu não consiga salvar todos os barcos, espero que, ao falar hoje, vocês tenham absorvido um pouco de luz, um pequeno saber que vocês não podem ser silenciadas, uma pequena satisfação de que a justiça foi servida, uma pequena segurança de que estamos chegando a algum lugar e uma grande, grande certeza de que vocês são importantes, inquestionavelmente, vocês são intocáveis, vocês são lindas, vocês devem ser valorizadas, respeitadas, inegavelmente, todos os minutos de todos os dias, vocês são poderosas e ninguém pode tirar isso de vocês. Para as garotas em toda parte, estou com vocês. Obrigada.