república dos grampos

É hora de os juízes voltarem aos tribunais

Frente à atual crise política, tanto quanto questionar o que restará dos Executivo e Legislativo, cabe perguntar qual será o Poder Judiciário que dela sairá?

Valter Campanato/Agência Brasil

Lava Jato teria se tornado, para as forças do Judiciário, um tribunal de exceção

Quem lê a grande obra de Elio Gaspari sobre a ditadura de 64, especialmente no ensaio “O sacerdote e o feiticeiro” fica com a nítida impressão de que a volta dos militares aos quartéis, como se dizia na época, tinha como objetivo salvar o que restava da hierarquia nas Forças Armadas. Salvá-las do monstro que elas mesmas haviam criado – Serviço Nacional de Informação (SNI) – a “comunidade de informação”.

Um capitão da “comunidade de informação” mandava mais que um coronel, um coronel constrangia generais. Ninguém estava a salvo de ser grampeado e das consequências e riscos para a segurança pessoal que isso representava. A Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp) deveria lembrar-se disso.

Pois bem, me é inevitável o paralelo entre a Lava Jato e o SNI. A República do Grampo está de volta. Estaria enganado quando percebendo casos de arrogância de subordinados, quando não resvalando perigosamente no desafio à autoriadade?

Temos ouvido de pessoas com formação acadêmica suficiente para perceber as nuances do quadro político atual que a presidente Dilma, ao nomear Lula como ministro, tentou “livra-lo” do juiz Sergio Moro favorecendo o ex-presidente com um “foro privilegiado” – o Superior Tribunal Federal (STF).

E afirmam isso como se a presidente tivesse cometido um crime de responsabilidade.

Perguntas que se impõem.

Por que o juiz Moro é alguém de quem uma pessoa deva ser livrada?

Por que ser julgado na última instância sem direito à apelação seria um “privilégio”? Pelo menos dois políticos com altos postos no PSDB fugiram desse “privilégio” renunciando aos mandatos. Para o PT seria o inverso?

Por que o ministro Gilmar Mendes do STF seria mais benevolente com Lula do que o juiz Moro da primeira instância federal de Curitiba o seria?

Por que as forças de oposição, mídia à frente, buscam por todos os meios e influências que Moro seja o juiz de Lula e que o prenda?

E aqui a questão principal: que crime Lula cometeu para ser preso?

A única resposta que me ocorre é: o STF não seria benevolente mas, sem dúvida, seguiria o Código de Processo Penal. E isso não interessa às forças de oposição. Embora seja crucial para a continuidade da nossa democracia.

A Lava Jato teria, então, se tornado, para essas forças, um tribunal de exceção. Nela, por essa ótica, buscariam a aplicação do direito penal do inimigo. Nos tribunais da ditadura, não havia o direito a habeas corpus.

Por certo que não há pau de arara nas dependências da Policia Federal, mas as rotineiras conduções coercitivas sem que o investigado tenha se recusado a dar depoimento, a execração pública – o “japonês da Federal” como ícone – e as longas prisões preventivas como forma de quebrar o moral do “investigado”, creio que não há quem hoje as negue, tampouco me parecem se coadunar com o direito ao amplo direito de defesa e com a presunção de inocência – direitos constitucionais e basilares do Estado Democrático de Direito.

A Lava Jato só deveria explicações às consciências dos seus integrantes e à sua noção do que seria a lei. Sua força não viria da jurisprudência e da doutrina – da exegese da norma escrita e aprovada, mas da escandalização da opinião publica – o bem contra o mal. Há inclusive trabalho acadêmico do próprio Moro apoiando essa hipótese.

Assim, com o subterfúgio do crime conexo e com o uso de analogias – qualquer argumento que possa insinuar uma relação, por exemplo, entre a Odebrecht e o PT seria associável à corrupção na Petrobras – teria estendido sua jurisdição sobre todo o território nacional e sobre qualquer assunto. O doleiro do Paraná, a refinaria de Pernambuco ou a de Pasadena, nos Estados Unidos, contas na Suíça, um apartamento no Guarujá ou um sítio em Atibaia, ambos em São Paulo, tudo estaria sob a jurisdição da Lava Jato.

O juiz à frente da Lava Jato investiga, acusa e julga. E autoriza a si próprio. Além de exarar conceitos sobre moralidade pública.

Não foi sem preocupação e recordações do passado que ouvi do juiz Moro, quando confrontado sobre a legalidade de um grampo realizado sem a devida autorização judicial – dada e levantada por ele próprio – e da sua divulgação, decidida por ele próprio, contendo diálogos, alguns não associados com o fato investigado, e envolvendo autoridades com prerrogativa de foro ao nível da presidência da República: “a democracia em uma sociedade livre exige que os governados saibam o que fazem os governantes, mesmo quando estes buscam agir protegidos pelas sombras”.

Sem dúvida uma verdade, mas para a qual o conteúdo deve se subordinar à forma. À forma da lei.

“A democracia em uma sociedade livre exige que os governados saibam o que fazem os governantes, mesmo quando estes buscam agir protegidos pelas sombras”.

Uma perigosa frase de efeito que, se tornada regra incondicional, teria o poder de trazer de volta a “comunidade de informações”. E os seus poderosos “cachorros” e “arapongas” com seus gravadores e deduragens – também essas premiadas, na maioria das vezes. Tudo em nome da democracia e do interesse público maior.

O Poder Judiciário, que não tem votos, é um poder democrático enquanto se subordina às e se limita pelas regras escritas e aprovadas pelos que têm voto. Torna-se então o guardião do Direito, porém, jamais seu dono.

Votos e regras escritas e iguais para todos – as bases da nossa democracia. Estado Democrático de Direito.

Além de, por óbvio, da observância estrita do direito processual penal e da existência de instâncias superiores na Justiça a quem recorrer. E, essas, detentoras de efetivo poder para reformar decisões de instâncias inferiores. A elas caberia resguardar os direitos dos réus. Garantidoras da não pena aos inocentes, da não perseguição aos inimigos e da não vingança contra os condenados.

Já houve quem em praça pública propusesse que o questionamento à Lava Jato seria um atentado à democracia. Um atentado, não menos.

O surgimento de outro poder, irrecorrível, insubmisso e autônomo às três condicionantes – voto popular, regras escritas e aprovadas por quem tem o voto popular e sua aplicação igual a todos, esse seria o verdadeiro risco à democracia. Ainda que esse poder tivesse amplo e momentâneo apoio de uma parcela significativa da população. Ditadores amados, não são nem incomuns, nem menos ditadores.

Premido por estas reflexões, frente a atual crise política, creio que, tanto quanto questionar o que restará dos Poderes Executivo e Legislativo, cabe nos perguntar qual será o Poder Judiciário que dela sairá?

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