direitos humanos

No inferno de Guantánamo. Um crime premeditado dos Estados Unidos

Preso desde 2001, o mauritano Mohamedou Ould Slahi apresenta no livro 'Diário de Guantánamo' um relato escabroso sobre a indignidade e a humilhação que ainda sofre

Fotos: Cruz Vermelha e Reprodução Amazon

Slahi começou a escrever seus manuscritos em 2005. Já estava há quatro anos em cativeiro, e ainda permanece lá

Mohamedou Ould Slahi escreveu, no meio do inferno de Guantánamo, um relato escabroso sobre a indignidade e a humilhação que ainda sofre. E ainda consegue manter humanidade e espirito de ironia.

O crime contra a humanidade da instalação do campo de prisão e torturas de Guantánamo foi praticado com aleivosia e premeditação. Ao instalá-lo no limbo que representa Guantánamo, queriam exatamente um lugar fora de qualquer jurisdição internacional, onde não houvesse nenhum limite ou controle sobre as barbaridades que pretendiam cometer. Os resultados são já em parte conhecidos, sem que nenhuma condenação formal do que os Estados Unidos continuam a realizar ali tenha sido aprovada. Problemas de direitos humanos, segundo esses organismos, acontecem na Venezuela, no Irã, na China, em Cuba, mas não em Guantánamo.

A publicação recente de um relato de um preso no inferno de Guantánamo, apenas se agrega às monstruosidades conhecidas, mesmo se grande parte do livro aparece borrado, com censura sobre o que deve significar situações ainda mais bárbaras do que as relatadas.

Diário de Guantánamo é de autoria de Mohamedou Ould Slahi, um cidadão mauritano que, segundo a foto divulgada pela Cruz Vermelha Internacional, era um jovem africano magro e sorridente. Não fica claro de quando é a foto, menos ainda a aparência que ele deve ter depois de tudo o que ainda passa.

Ele foi detido em 2001, continua preso, apesar da ordem de juiz federal que decretou sua libertação imediata em 2009. Outro juiz federal forçou as autoridades militares de Guantánamo a autorizarem, depois de uma batalha de seis anos, que se pudesse tirar da prisão o testemunho escrito por Ould Slahi, escrito na sua cela de isolamento. O livro é um brutal relato do que ele viveu ali, ainda que quase a metade das páginas estejam censuradas, imposição das agências de segurança dos Estados Unidos.

Ould Slahi nem chega a ter características que pudessem classificá-lo como terrorista, tanto assim que em 14 anos de brutais interrogatórios, não conseguiram acusá-lo de nenhum delito. Em 2001 ele tinha 30 anos. Nasceu na Mauritânia, de uma família religiosa e modesta. Era muito batalhador e conseguiu se formar em Engenharia Eletrônica. Durante vários anos estudou e trabalhou na Alemanha.

Seu fervor militante levou-o a passar um verão em treinamento guerrilheiro no Afeganistão, quando as milícias islâmicas gozavam da proteção e do apoio econômico dos Estados Unidos. Quando voltou do Afeganistão, se afastou da militância política. No final dos anos 1990 transferiu-se para o Canadá, procurando um clima mais favorável para os imigrantes do que o vivido na Alemanha.

Em outubro de 2001 voltou para seu país. Assim que chegou, recebeu visita da polícia, para algumas consultas de rotina, segundo os policiais. Disseram-lhe que fosse com seu próprio carro, assim voltaria mais rápido para sua casa, talvez essa tarde mesmo, quando terminasse tudo.

Até hoje ele não voltou. Foi algemado, amarrado pelos pés, os olhos vendados, colocaram uns tampões nos seus ouvidos, um capuz na sua cabeça. Os policiais da Mauritânia disseram-lhe que uns emissários dos Estados Unidos tinham interesse nele. Tiraram-lhe a roupa e colocaram um pijama cor laranja e um cinto branco. Foi levado arrastado para um avião e amarrado a um banco. Quando o avião aterrissou, ele conseguiu saber que tinha sido levado para a Jordânia.

Ould foi interrogado e torturado durante oito meses em uma prisão de Amã. Depois foi embarcado em um outro avião, nas mesmas condições do voo anterior, até a base de Bagram, no Afeganistão. Em nenhum momento o informaram do que ele era acusado. Um tempo depois foi levado em novo voo e arrastado pela escada de um avião para a pista, quando notou o ar quente e úmido de Guantánamo.

Não transcrevo aqui nada do que foi revelado por ele, pela indignidade e a humilhação de tudo o que ele ainda sofre. São revelações escabrosas.

Ould conseguiu aprender inglês em meio a tudo o que vivia, prestando atenção na fala dos seus torturadores, assim como colocando atenção nas letras das músicas que ouvia desde sua cela (para não dizer jaula). Seu livro é um testemunho terrível, escrito no inglês que ele conseguiu aprender, escrito por alguém que, no meio do inferno de Guantánamo, conseguiu manter sua humanidade e seu espirito de ironia.