Opinião

Tiririca estava errado: a situação piorou

Eleição de Congresso retrógrado é grande perigo para os direitos humanos e civis. Reacionários podem ameaçar com projetos como Estatuto do Nascituro e redução da maioridade penal

Jennifer Glass/RBA

‘Mudanças exigidas não vieram. Mudança para pior, eu descarto’

Ainda estou tentando digerir as eleições do último domingo, compreender o que parece incompreensível.

Primeiro: por que tantos brasileiros endireitaram, no pior sentido possível? Ainda temos muito o que discutir sobre as manifestações de junho de 2013. Não tenho dúvida que, no início nos protestos, liderados pelo Movimento Passe Livre (MPL), havia uma forte presença de esquerda por mudanças. Tanto que a mídia tradicional rapidamente se posicionou contra – seriam apenas jovens arruaceiros atrapalhando o trânsito e promovendo quebra-quebra. Porém a violência policial usada para conter esses “vagabundos” (que é como a direita vê praticamente qualquer manifestante no Brasil) virou o jogo. Teve gás lacrimogêneo, bala de borracha, tropa de choque.

De repente, os mais típicos reaças,  gente do quilate de Jabor, Pondé e Gentili, passaram a apoiar os protestos. E as manifestações começaram a atrair gente esquisita, que se enroscava na bandeira brasileira, cantava o hino, carregava cartazes de “Deus, Pátria e Família”, e hostilizava qualquer bandeira de partido mais vermelho.

Daí passou a se ouvir o “fora, Dilma” e muitos sussurros de golpe. Tinha tanto integralista desfilando que o MPL abandonou o protesto. E veio a dúvida: o que restava a um manifestante de esquerda, desses que iniciaram os protestos? Sair das manifestações, deixando o terreno livre para os fascistas, ou marchar ao lado deles? Uma decisão ingrata.

No entanto, em todos os congressos de partidos mais à esquerda aos quais vou, ainda hoje se fala das manifestações de junho com enorme nostalgia, como se tivesse sido uma verdadeira revolução, como se gente com bandeiras vermelhas não tivesse sido ameaçada e agredida por gente que gritava “nossa bandeira não tem vermelho”. Não sei se a direita aproveitou as manifestações de junho para acordar, mas alguma coisa um tanto nefasta acordou.

Um ano depois, duas pesquisas mostraram que o brasileiro estava cada vez mais conservador. Uma delas, a do Datafolha/O Povo, classificou as respostas sobre aborto, pena de morte, homossexualidade, maioridade penal e economia, entre outras, entre direita, esquerda e centro. Como o instituto havia realizado o mesmo levantamento em novembro de 2013, permitiu uma comparação. Na pesquisa de novembro, 41% dos entrevistados tinham inclinação para a esquerda ou centro-esquerda e 39% para a direita (20% seriam o centro). Menos de um ano depois, ocorreu a inversão: agora, 45% estavam à direita e 35%, à esquerda.

Acredito que foi nesse cenário tão favorável à direita que, no último domingo, elegemos o Congresso mais conservador desde 1964, segundo o Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar (Diap). Jair Bolsonaro não só foi o deputado federal mais votado no Rio de Janeiro, como também elegeu dois de seus filhos; Celso Russomanno, Tiririca e Marco Feliciano dividiram os três primeiros lugares em São Paulo. Pastores extremistas, delegados e ruralistas foram bem votados em todo o país. Eduardo Suplicy, um senador comprometido com movimentos sociais e sindicais, foi substituído por José Serra.

Parece óbvio que, com esse Congresso retrógrado, não se falará da legalização do aborto, mas o pior é que se falará, sim: os fundamentalistas cristãos terão força para aprovar leis que restrinjam ainda mais a interrupção da gravidez. Quem sabe não passa o Estatuto do Nascituro?

É evidente que, no primeiro latrocínio cometido por um menor de idade que cause comoção nacional, será votada (e aprovada) a redução da maioridade penal.

Independente de quem venha a ser presidente, Dilma ou Aécio, vamos respirar conservadorismo pelos próximos quatro anos, no mínimo.

Porém, já vimos que o slogan que elegeu Tiririca – pior que tá, não fica –  não é verdadeiro. Fica sim. Se já será temerário contar com um Legislativo desses, imagine que beleza se ele fizer dobradinha com um Executivo tão conservador quanto.

Ainda tenho esperança de que o PSDB não volte ao poder. Não consigo entender a arrancada de Aécio na reta final do primeiro turno. Já há até quem fale em especuladores do sistema financeiro tendo fraudado as urnas eletrônicas para dar os quase 34% a Aécio, que três dias antes não chegava a 26% nas pesquisas (por que só a direita tem exclusividade sobre as teorias conspiratórias?).

Alterno pessimismo e otimismo. Já não sei se tenho esperança que Dilma reeleita consiga fazer um governo mais ousado, menos refém dos conservadores. Contudo sei que com Aécio pode ficar bem pior. E sei que as mudanças que tantos manifestantes exigiram nos protestos de junho de 2013 não são essas que vieram. Mudança para pior, eu descarto, obrigada.

Lola Aronovich é professora da Universidade Federal do Ceará, autora do blog Escreva Lola Escreva e colunista da RBA

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