Os bons costumes

Judiciário cria bolha de proteção para separar Aécio de seu passado

Tucano teve quatro anos para atacar oponente sem ser incomodado. Mas, na hora em que se viu sob dificuldades, recebeu o apoio do TSE, que sob o manto da 'boa campanha' decidiu desequilibrar a disputa

Sérgio Lima/Folhapress

Missão cumprida: Mendes abriu caminho a jurisprudência que garante pista livre a Aécio contra Dilma

É louvável a preocupação dos ministros do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) em ajudar a elevar o nível dos debates do segundo turno da eleição presidencial, notadamente baixo, estarrecedor, de causar tristeza. Ninguém pode se opor a uma tentativa de tornar respeitosa a troca de ideias entre Dilma Rousseff (PT) e Aécio Neves (PSDB).

Porém, há ao menos duas questões preocupantes na linha de raciocínio estabelecida na última quinta-feira (16) pelos ministros do TSE, ao deixar claro que não mais permitirão que os programas políticos no rádio e na televisão façam críticas ou denúncias ao adversário da vez. A primeira, elementar, é de que não se muda as regras do jogo com a bola rolando. Menos ainda quando nos aproximamos dos cinco minutos finais de um clássico acirrado.

A segunda, bem mais complexa e passível de debate, diz respeito àquilo que se almeja de uma disputa eleitoral. A população, sem dúvida, tem o direito de ouvir prioritariamente dos candidatos as propostas para o futuro do país. Mas tem, igualmente, o direito de saber o passado dos postulantes a qualquer cargo, uma vez que a trajetória de um político é fundamental para entender quais serão suas escolhas futuras.

Neste aspecto, observar o contexto em que o TSE decidiu mudar sua jurisprudência é salutar. Desde agosto Aécio Neves conta com pista livre pela frente para usar em seu programa denúncias contra a adversária e seu partido, o PT. Ao longo destes dois meses, dois meses e meio, chegou a se valer inclusive de ter como proposta central o “voto útil contra o PT”, o que, convenhamos, está longe de garantir a campanha propositiva que almejam os ministros da Corte Eleitoral. E pôde lançar mão, incontáveis vezes, de manchetes e áudios fornecidos por reportagens da mídia tradicional. No caso central de sua campanha anti-Dilma, na maior parte das oportunidades abasteceu-se dos dados fornecidos por Paulo Roberto Costa, ex-diretor da Petrobras e criminoso confesso.

Ao chegar ao segundo turno, porém, o senador passou a ser alvo de críticas e denúncias pelo programa de Dilma. De lá para cá, indicam as pesquisas, viu crescer sua rejeição, muito com base em seu passado como governador de Minas Gerais. Maus resultados nos serviços públicos, desvio de finalidade de recursos na saúde, uso de recursos estaduais para financiar obras em propriedades de parentes e nepotismo são algumas das questões evocadas pela petista.

O caso que levou o TSE a lançar sobre a campanha o “manto do respeito” é particularmente curioso. A coligação Muda Brasil, encabeçada pelo PSDB, moveu ação para que Dilma fosse impedida de veicular trecho de sua propaganda que abordava a censura de Aécio aos meios de comunicação mineiros. Irritou particularmente o momento em que a ex-presidenta do Sindicato dos Jornalistas de Minas Gerais, Eneida da Costa, afirma que o tucano perseguia profissionais de imprensa. “Tudo o que desagradava o governo Aécio era como no tempo da ditadura, era um telefonema e o repórter, o fotógrafo, o jornalista, em qualquer posto, estava ameaçado de perder o seu emprego”, diz.

Ainda mais curiosa é a origem da reclamação de que a Corte deveria ajudar a elevar o nível dos debates vetando críticas ácidas entre os candidatos. Gilmar Mendes, também ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), foi quem abriu voto divergente do relator do processo no TSE alegando que tem um papel institucional de garantir um novo parâmetro para a realização do horário eleitoral.

Mendes, famoso pela defesa de interesses conservadores. Mendes, o mesmo que recentemente recebeu telefonema de Fernando Henrique Cardoso minutos antes de votar o caso em que se pedia pela cassação da candidatura de José Roberto Arruda, candidato ao governo do Distrito Federal – recorde-se que em seguida se posicionou a favor da manutenção do cabeça de chapa do PR.

Entre os votos vencidos na sessão de quinta-feira, merece destaque o de Maria Thereza de Assis Moura:  “Estou de acordo que o tribunal deve fixar os parâmetros para que as campanhas tenham decoro”, disse. “Mas se nós estamos fixando esse parâmetro, qual é esse parâmetro? Não é possível o quê, para o outro candidato?  Não é possível falar mal? Ou então só será possível falar de programa de governo?”

Dúvidas que começaram a ser respondidas nos dois dias seguintes, com uma chuva de liminares favoráveis aos dois lados em disputa no segundo turno. Aécio foi proibido de seguir falando de denúncias feitas por meios de comunicação envolvendo a Petrobras, o que de imediato abarca quatro inserções no rádio e na TV.

Dilma não pode mais falar do aeroporto construído com dinheiro de Minas em terras de um tio de Aécio. O horário eleitoral “não pode ser desvirtuado para a realização de críticas destrutivas da imagem pessoal do candidato adversário, nem é justo que o ofendido tenha de utilizar o seu próprio tempo para se defender de ataques pessoais em prejuízo de um autêntico e benfazejo debate político”, argumentou o ministro Tarcisio Vieira de Carvalho Neto.

A decisão do TSE parece tomada de ideais de justiça ao contemplar ambos os lados. Mas, ainda que porventura algum ministro tenha tomado a decisão investido desta noção, o resultado é o desequilíbrio. Por um motivo tão visível quanto simples: Aécio conta 24 horas por dia com amplo apoio dos setores dominantes da imprensa. Além de ele e sua família serem proprietários e de emissoras de rádio e TV – prática vedada pela Constituição, diga-se de passagem –, é notória a ânsia da mídia tradicional, Globo à frente, de ver o PT derrotado.

Num país em que a audiência televisiva é altamente concentrada, e por consequência a capacidade de formação de opinião, o horário eleitoral acaba por cumprir a função de restituir, ou ao menos tentar, algum equilíbrio à difusão de informações. Se Dilma passou quatro anos sob ataque, às vezes com fundamento, às vezes não, ostentava agora dez minutos que lhe garantiam divulgar suas propostas sem a intermediação de um veículo que propositalmente “esquece” informações pelo caminho e, de quebra, divulgar dados sobre seu adversário deixados de lado por uma imprensa que há tempos esqueceu o interesse público para se portar como partido político.

Neste sentido, a decisão do TSE tem um efeito prático a favor de Aécio, que contará na última semana de uma eleição acirrada com uma campanha gratuita para a qual sua adversária terá dificuldades de apresentar contraponto, amarrada que estará pela legislação eleitoral. O caso Petrobras seguirá à tona, com ou sem citações diretas pela candidatura tucana. O do aeroporto de Cláudio, não, esquecido que ficará.

Se a alguém ainda couber ingenuidade sobre a parcialidade de nossa mídia tradicional, vale conferir os estudos feitos pelo Manchetômetro, grupo criado por pesquisadores da Universidade Estadual do Rio de Janeiro. A contabilidade de 2014, até o dia do primeiro turno, dava conta de 567 reportagens tratando de “escândalos” com participação de petistas, contra 187 em que apareciam quadros tucanos. Os dados da cobertura desta última semana são interessantes: no Jornal Nacional, Dilma recebeu 14 reportagens contrárias, 22 neutras e duas favoráveis. Aécio, uma contrária, uma favorável e oito neutras.

Sob o “manto do respeito”, o que os ministros do TSE fizeram foi jogar sobre a campanha o manto da proteção. A Aécio, que ganhou uma bolha de proteção que o isola de seu passado.