A vitória da ‘nova política’

Seja qual for o resultado do segundo turno, a 'política infantilizada', do desejo imediatista, sai vencedora. Ao PT, participante do esvaziamento do simbólico, resta despertar o espírito progressista

Robson Ventura/Folhapress

Será muito difícil dar curso a qualquer instrumento que possa permitir uma reforma política

 

Sim, todos sabem que a candidata que empunhava a bandeira retórica da “nova política” protagonizou um notável vexame no recente primeiro turno das eleições. Marina Silva, que tinha disparado nas projeções de intenção de voto um mês antes, desabou para o modesto desenlace de 21% dos votos válidos (19% do total de votantes; apenas coisa de 2 milhões de votos a mais que os 20 milhões obtidos quatro anos antes; e cerca de 5,5 milhões a menos que o impressionante número de eleitores que se abstiveram). No entanto, a vacuidade da sua palavra de ordem retórica e o favor que ela prestou às forças conservadoras alcançaram uma considerável vitória.

Se recusamos a compulsão sectária pela verificação do pedigree ideológico desta ou daquela “esquerda”, talvez possamos nos aproximar melhor, analiticamente, das grandes forças políticas em choque na América Latina nas últimas décadas, no espaço de constituição do Estado. De modo semelhante, podemos açambarcar variações de tonalidade dentro delas que, de outra maneira, permaneceriam inarticuláveis para além de fronteiras bastante estreitas.

De um lado estão as forças oligárquicas que ascenderam ao capital produtivo e financeiro por meio da patrimonialização do Estado. Na verdade, é difícil lhes precisar uma especificação estritamente econômica, uma vez que suas raízes se assentam sobre uma cultura sociopolítica do privilégio, de grande profundidade histórica. Eu preferiria chamá-las simplesmente de “forças senhoriais”, e de “senhorialismo” a ordem social que estabeleceram.

De outro lado estão as forças até bem pouco tempo apenas disruptivas que emanavam daqueles para os quais, nessa cultura sociopolítica, o escritor mexicano Mariano Azuela consagrou a alcunha de “os de baixo” (“los de abajo”). Se a ordem senhorial desenhou um projeto de Estado que conseguiu se naturalizar por meio do empréstimo de alguns cânones bastante postiços de uma pretensa modernidade européia, a experimentação multifacetada dos “de baixo” perambula por socialismos imaginados e imputações de populismo que não lhes asseguram mais que a (im)precisão de um desejo e de uma quimera. Não obstante, tudo é projeto; sobre o qual se disputa, permanentemente, legitimação.

Dessa forma, esse amplo mundo de esquerdas antissenhoriais poderia simplesmente ser chamado, como se tornou usual, de “campo progressista”. Este foi o maior derrotado nas recentes eleições, independente dos resultados do segundo turno e independente de uma eventual conservação do controle do Executivo federal pelo Partido dos Trabalhadores. Como se sabe, às vitórias eleitorais podem não corresponder vitórias políticas, do mesmo modo como ganhar muitas batalhas pode não corresponder a ganhar a guerra. No caso das últimas eleições, o artifício retórico da “nova política” perdeu ganhando, mas não da maneira como certamente suporiam os seus defensores.

O resultado das eleições para a Câmara mostra que o PT perdeu um quinto dos seus deputados, e seu mais fiel aliado, o PCdoB, perdeu um terço dos seus. O PSB, antigo aliado e atual oponente, que aceitou servir de hospedeiro para a candidatura de Marina Silva, encontra-se na estrada batida para a direita ― apesar de uns poucos dirigentes da velha guarda socialista ―, assemelhando-se ao processo pelo qual já havia passado o PPS. Este sim, o PSB, aumentou sua bancada de 24 para 34 deputados, a metade do que terá o PT (70). Já o neoliberal PSDB, por seu lado, teve sua bancada aumentada em um quarto do que era. Por outro lado, o número de partidos representados na Câmara passou de 22 para 28. Conhecendo-se o caráter desses partidos, ou se alinham confortavelmente com as forças conservadoras ou alimentam o fisiologismo que tão bem caracteriza o “peemedebismo”.

Em termos formais, a base parlamentar de apoio a um eventual novo governo Dilma contaria, nominalmente, com 304 deputados, o que lhe daria (ainda apenas nominalmente) a maioria simples da casa com uma folga de 50 deputados. Isso não quer dizer nada. O que se espera do PMDB é que, na prática, se alinhe com qualquer coisa que seja governo e que tenha poder de barganha. Como se sabe, foi o “peemedebismo” que manteve os governos federais do PT reféns da malfadada governabilidade, qual seja, de uma lógica da representação e da regulação de direitos em conformidade com a famosa fórmula de Lampedusa, pela qual as coisas devem mudar apenas para que tudo continue igual, ou seja, jamais ir longe demais na reforma da regulação social e numa ampliação da cidadania.

Em termos substantivos, o que sai das urnas em 2014, por trás da aparente diversidade partidária, é um Congresso marcadamente conservador. Já é visível a força das representações vinculadas ao agronegócio, às igrejas ultraconservadoras, às multinacionais químicas e farmacêuticas, à educação e saúde privadas, além de outros interesses empresariais que não hesitam em subordinar a eles qualquer ideia de bem comum. Se vislumbra até mesmo a possibilidade real de uma ameaça aos direitos cidadãos instituídos pela Constituição de 1988.

O deputado eleito pelo PMDB que já se postula, qualquer que seja o vencedor do segundo turno, como mais forte candidato à presidência da Câmara, Eduardo Cunha (PMDB-RJ), inimigo frontal de Dilma, que não hesita em usar qualquer recurso para fazer valer suas posições, teve sua carreira construída sobre um discurso contra homossexuais, contra o aborto e contra qualquer insinuação de arrefecimento ou racionalização da repressão policial ao uso de drogas.

Pela conformação de forças do futuro Congresso, vai ser muito difícil dar curso a qualquer instrumento que possa permitir uma reforma política. O sistema que atualmente proporciona o império do poder econômico sobre os processos eleitorais e a representação política, sem uma decidida iniciativa do(a) futuro(a) chefe do Executivo, vai ficar igualzinho como está, para beneficiar sempre quem conseguir montar o melhor caixa-dois de campanha, com todas as consequências que isso implica. Assim, é bastante provável que se aprofunde o fosso entre a atividade legislativa e as mediações orgânicas da sociedade que não sejam aquelas contempladas pelos lobbies econômicos. Se as jornadas de junho do ano passado representaram o auge de una crise de representação, o resultado das eleições de 2014 parece supor um divórcio absoluto entre voto e percepção da institucionalidade política. Isso não foi mero acidente inexplicável.

Por outra parte, nos governos estaduais, a velhíssima política se impôs com todo o seu peso, como se não houvesse ― e, a bem da verdade, não parece haver ― nenhuma alternativa a ela. A única exceção foi a vitória quase quixotesca do PCdoB sobre o clã Sarney no Maranhão. Mas também se pode dizer que ali o sarneysmo apenas caiu de decrépito, diante dos olhos estupefatos do PT local, amarrado pela aliança de gosto bastante duvidoso, a nível federal, do partido com esse velho clã oligárquico.

Então por que o vaticínio de que a “nova política” ganhou? Precisamente porque a sua vacuidade ideológica, embandeirada como “terceira via”, a converteu no elogio da antipolítica, num messianismo descabelado que reduziu a representação e a mediação ao que um observador atento qualificou como uma “política infantilizada” [1], ou seja, una espécie de hedonismo imediatista no qual a negociação do bem público se reduz à projeção de miragens e ressentimentos pessoalistas: “quero tudo agora e de qualquer jeito”, ou seja, a política transformada em bem de consumo. Isso não quer dizer que o discurso seja propriedade ou produto intelectual exclusivo de seu enunciador (ou como prefeririam alguns linguistas, seu “sujeito ilocucionário”).

No entanto, a posmodernidade verde do sonhatismo messiânico de Marina Silva serviu, por um lado, como aríete para uma direita pragmática e furiosamente antiprogressista, que logo voltou à casa do seu candidato tradicional assim que percebeu que a titubeante candidata ecologista não se aguentava sobre os seus próprios passos políticos. E por outro lado, serviu para aglutinar desilusões setoriais (progressistas inclusive) cultivadas frente ao exacerbadamente tecnocrático governo Dilma, como ambientalistas, militantes indigenistas ― todos, vistos de uma perspectiva progressista, absolutamente corretos nas suas críticas ― e uns quantos ativistas culturais (o pessoal do “postudo”) com alguma quedinha pelo “quero tudo agora e de qualquer jeito”. Enfim, tudo muito idealista, abstraído das miseráveis mediações implicadas no trabalho duro da política, o trabalho duro de lidar com a contingência das exterioridades.

Essa espécie de curto-circuito narcísico entre política e desejo alimentou um imaginário ― ou, em tempos digitais, melhor seria dizer “uma virtualidade” ― que transformou a política em fantasia; fantasia que passa a ser movida por signos reificados, destituídos de conteúdo crítico sobre a própria complexidade política, encerrados no seu mágico imediatismo, incapazes, portanto, de servir como ferramentas de compreensão. O mais poderoso desses signos reificados seguramente é o da “mudança”. Há 30 anos, desde o começo da democratização a meias, esse signo é mobilizado em quase todo e qualquer discurso político para expressar uma platitude enunciativa: “não estamos de acordo”. É possível não estar de acordo com qualquer coisa que seja. Sem um referente contextual, ou seja, ideológico, ser a favor de mudanças pode significar simplesmente ser a favor de tudo e nada ao mesmo tempo. O discurso da mudança pode ser bom para fazer vítimas, mas se esse signo é reduzido a uma forma reificada, ele deixa de carrear qualquer positividade programática. A política transforma-se em marketing. É por aí que entramos no terreno conquistado pela “nova política”, e perdido pelas forças progressistas que atuam nos canais institucionais da representação e do controle do Estado.

O percurso histórico do PT no governo federal, se de uma parte representou a inclusão das massas miseráveis no universo do consumo ― sem, no entanto, se preocupar com uma ampliação efetiva da cidadania e com um projeto estratégico de sociedade, qual seja, de regulação social ―, de outra parte caracterizou um esvaziamento da política em nome da gestão: uma espécie de paternalismo tecnocrático das boas intenções. Sim, é verdade que ele operou avanços sociais importantes. Se, de uma parte, ganhou a duvidosa consciência do favor, da gratidão (sobretudo com Lula), de outra, perdeu a consciência da participação. Enquanto pôde distribuir os dividendos do boom das commodities ― e essa é a base material do distributivismo petista (que agora sugere poder reciclá-lo com o pré-sal) ―, o governo do PT andou bem. Quando a fonte secou, não encontrou mais mensagem política para ganhar os dividendos simbólicos do pleno emprego, porque a estrita lógica do consumo o converteu em uma dádiva justificada pela ideologia meritocrática individualista [2]. O mecanismo simbólico do consumo coloca o ser narcísico no centro lógico da vida social. Como lembrou certa feita o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro, o capitalismo não é necessariamente um sistema de produção de bens, mas sim um sistema de produção de necessidades [3]. Ao reduzir a política à ampliação do consumo, o PT foi, na verdade, um dos maiores patrocinadores da legitimação simbólica da “nova política”.

O governo Dilma representou o ápice do encastelamento palaciano do mais forte representante partidário do progressismo, exatamente aquele que chegou ao poder e demonstrou ser capaz de ter algum sucesso. Com esse encastelamento, o PT perdeu sua capilaridade social. O sangue da consciência organizativa dos movimentos sociais deixou de chegar ao cérebro do governo, do mesmo modo como a política como projeto estratégico e como invenção deixou de chegar aos músculos agregadores da sociedade, dividindo-a num sem-fim de particularismos atomizados onde cabe qualquer coisa, inclusive a ferocidade fascista e a anomia anarco-radical, que, como todos viram, também se agregaram às jornadas de junho de 2013.

Colapsar, em clave hedonista, política e desejo acabou, de modo geral, sendo a melhor arma para a direita midiática. Ela a usou sob o signo do ressentimento, algumas vezes obliterando seus significantes, algumas vezes demonizando bodes expiatórios (nordestinos, favorecidos por programas sociais etc). Foi o conteúdo semântico do ressentimento que deu recheio e impulso ao signo reificado da “mudança”, do qual o progressismo, por falta de um discurso contextual, perdeu a mão na batuta, ou seja, perdeu a agenda. E a perdeu por acreditar ingenuamente que a mudança era sua propriedade simbólica natural, sem ter que se esforçar com o trabalho político na sua derradeira fronteira: a disputa pela legitimação. Isso não é apenas uma questão de “política de comunicação”; é uma questão de… política, ou melhor, é “a” questão-chave da política, para a qual todos os recursos precisam ser ponderados.

A direita midiática, sim, soube produzir, capilarizar e superexplorar o ressentimento, sobretudo nos grandes centros urbanos do maior colégio eleitoral do país, e sobretudo por meio do rádio, que continua sendo o principal recurso de informação das massas trabalhadoras, que muitas vezes mal têm tempo de ver televisão. Na verdade, os canais midiáticos se reforçam mutuamente, até que seu discurso seja carreado, consolidado, plasmado sob a forma (ou a aparência) de opinião (proferida por pessoas virtuais) na internet. Quando um discurso chega à internet, apenas residualmente (em termos de massa de público interlocutor) chega como informação.

A despeito dos mitos construídos sobre a internet, a informação sociopolítica que ela possa prover é um luxo intelectual para poucos: os que dispõem de tempo e que, com ele, têm também disposição para um esforço intelectual a mais: buscar, confrontar, ponderar, ajuizar. Se uma certa juventude, por exemplo, ainda tem tempo, ela não o utiliza necessariamente para obter informação na internet, ela o utiliza antes para compartilhar opiniões socializadas em rede. Trata-se já de uma informação previamente moldada, que, no ambiente simbólico em que nos encontramos, passa a circular sob o registro imediato da satisfação… e também da sua fúria: a ostentação de um ego insaciável. Pobre de quem achar que isso se reduz a uma questão moral! Trata-se de uma questão cultural, realizada, concretizada, viabilizada e legitimada no campo de possibilidades engendrado por meio dos dispositivos da institucionalidade (esteja ela em que âmbito estiver), ou seja, dispositivos regulatórios da socialidade.

Contudo, o prejuízo talvez mais duradouro do encastelamento palaciano do PT pode ter sido o adormecimento do espírito progressista. Quando os mais fortes e evidentes representantes partidários dos movimentos sociais, aqueles que poderiam oferecer a esses “de baixo” um projeto amplo e participativo de poder, cortam o fluxo da seiva política, o que se perde é o horizonte mais largo de sentido para esses mesmos movimentos, o horizonte no qual os interesses coletivos, em lugar de serem apenas demandas clientelares, tornam-se governança. Não se sabe até que ponto esse espírito adormeceu e o quanto vai a ser possível (ou se queira) despertá-lo. O PT só continuará a fazer sentido como partido enquanto o mantenha desperto. Se ele adormece, como está profundamente adormecido na Europa, estarão perdidas décadas de esforços e esperanças.

Ricardo Cavalcanti-Schiel é antropólogo, mestre e doutor pelo Museu Nacional (UFRJ)

[1] http://www.viomundo.com.br/politica/paulo-copacabana-marina-sera-aprisionada-pelos-banqueiros.html
[2] Leia-se, por exemplo, a sugestiva análise do semioticista Wilson Ferreira em http://cinegnose.blogspot.com.br/2014/10/sociedade-de-consumo-e-o-ovo-da.html#more
[3] http://www.socioambiental.org/pt-br/blog/blog-do-isa/o-brasil-e-grande-mas-o-mundo-e-pequeno