Direitos

Lola Aronovich: e, pra variar, a culpa é das mulheres

As brasileiras continuam não tendo escolha. E, enquanto os religiosos tentam restringir ainda mais o direito ao aborto, mulheres seguem sendo mortas em procedimentos sem a menor segurança

Fernando Frazão/ Abr

Jovem levanta cartaz contra a violência durante ato político feminista no Rio de Janeiro, em agosto deste ano

Este caso é incrível. Ocorreu em outubro do ano passado, em Carira, no agreste de Sergipe. Jobson e Daiane começaram um namoro quando ela estava com apenas 13 anos, e ele, com 18. O namoro durou oito anos. Antes de Daiane completar 21 anos, Jobson se casou com outra moça, sem avisar Daiane, com quem continuou se relacionando, mesmo casado. Daiane engravidou. Jobson insistiu que ela fizesse um aborto. Ele compraria “o remédio”, ela o tomaria. Ela se recusou. Então, Jobson lhe deu bombons. Daiane comeu um. Morreu envenenada na mesma noite.

A sentença saiu na semana passada. Jobson, agora com 27 anos, foi absolvido por júri popular. Mais de dez testemunhas depuseram, ele admitiu que foi quem deu os bombons a Daiane, mas o júri alegou “falta de provas”. Ainda que as fichas de atendimento do hospital e relatórios médicos registrassem o envenenamento de Daiane, o laudo pericial não confirmou. Não porque não existiu, mas porque Sergipe “não tem peritos e aparelhos suficientes para atestar envenenamento”, segundo o promotor do caso.

Ao ler a notícia, pensei imediatamente em dois dos maiores filmes da longa carreira de Woody Allen: Crimes e Pecados e Ponto Final. Em ambos, o homem mata a amante, que estava atrapalhando seus planos. Em Crimes e Pecados, ele manda matá-la; em Ponto Final, ele mata com as próprias mãos a amante grávida, que também não quisera abortar. Nos dois filmes, os homens ficam impunes. Não, não é bem isso, é bem mais – eles prosperam. São recompensados. Não sentem culpa. É como se tivessem se livrado de um grande aborrecimento.

Evidente que o caso de Sergipe consegue ser pior, porque é real, e porque é como se o Estado, ou a falta de estrutura desse Estado, servisse de álibi para assassinos. Pior também porque foi um júri popular que decidiu que Jobson era inocente. A culpada provavelmente era Daiane. Foi ela quem começou a namorar com 13 anos. Ela que manteve um caso extraconjugal. Ela que engravidou. Ela era mulher, afinal.

Lembro como se fosse ontem de uma notícia lida na internet cinco anos atrás: um professor de Direito da USP matou o filho pequeno e se suicidou em seguida, porque a guarda do menino tinha ficado com a mãe. Praticamente todos os comentários punham a culpa… Na mãe. Nela e na Justiça, que dá a guarda para uma mulher e não para um sujeito que viria a matar o próprio filho. Um dos comentários era em tom de ameaça: “Enquanto a Justiça não parar de discriminar os homens, muitas crianças ainda morrerão.”

O chocante é que esses rapazes que absolvem Jobson e justificam a execução de um garoto são os mesmos que enchem os pulmões para gritar “assassinas” às mulheres que abortam. Eles devem estar aplaudindo de pé dois acontecimentos recentes muito parecidos, que terminaram com a morte de duas mulheres que tentaram abortar clandestinamente. Ontem (24) foi divulgado o exame de DNA que confirmou que o corpo carbonizado encontrado num carro no Rio era o de Jandira, moça desaparecida desde o final de agosto, quando foi levada a uma clínica ilegal para abortar. Foi o segundo caso em um mês, o que nos dá uma noção do quanto é comum mulheres desesperadas morrerem em macas de açougueiros.

Li inúmeros comentários de que Jandira e Elizângela, a outra vítima, ambas dentro do perfil das mulheres que realizam o aborto no Brasil (casadas, com filhos, religiosas), “mereceram” morrer. Agora, elas estariam “no colo do capeta”, obtendo o castigo necessário, já que a morte não é punição suficiente. Elas, e não Jobson ou o professor que matou o filho, são as verdadeiras assassinas. Perceba que Daiane, a moça grávida envenenada com bombons, não ganha pontinhos no céu por ter se recusado a abortar. Nem Jobson é moralmente condenado por exigir que a amante aborte. Porque aborto é uma questão de mulheres. Homens parecem não ter nada a ver com o assunto. Os tantos que negam a paternidade, ou que somem assim que a gravidez é anunciada, o que eles fazem não é aborto. Eles não são vistos como assassinos. Esse título cabe apenas às mulheres, aquelas criaturas que engravidam sozinhas.

O que me leva a concluir que a preocupação dos “pró-vida” (é difícil pensar num termo mais irônico para essa gente que aplaude a morte de mulheres) não é com o feto, que eles invariavelmente chamam de bebê ou criança. A preocupação é apenas com a punição da mulher. Essas pessoas não querem que as mulheres possam abortar com um medicamento bastante seguro e eficaz como o misoprostol. Eles querem que elas sofram. Querem que elas morram.

A justificativa para esse ódio contra mulheres é que, se elas não queriam engravidar, não deveriam ter “aberto as pernas”. Ou deveriam ter se precavido. Afinal, métodos anticoncepcionais nunca falham.

Pois é. Na primeira quinzena de setembro, o New York Times publicou gráficos espantosos. De cada cem mulheres, quantas terão uma gravidez não desejada usando certos métodos anticoncepcionais por um longo período de tempo? Para quem só usa espermicida, a resposta é 96. De cada cem mulheres que usam camisinha feminina, 91 engravidarão. Com camisinha masculina, “só” 86. Tomando a pílula, 61 mulheres engravidarão. Isso porque a esmagadora maioria dos casais não usa os métodos de forma correta e consistente. Mesmo entre os poucos que fazem “uso perfeito” do método, nada é 100% seguro. De cada cem mulheres que usam (ou exigem o uso) “perfeitamente” da camisinha masculina, 18 engravidarão sem querer num período de dez anos.

Porém, espalhar que meios contraceptivos são totalmente seguros faz parte da estratégia conservadora de culpar a mulher. O que eles pregam mesmo é a abstinência. Querem que mulheres só façam sexo dentro do casamento. Se engravidarem, foi para isso que casaram mesmo, não foi?

As brasileiras continuam não tendo escolha. E, enquanto os religiosos tentam restringir ainda mais o direito ao aborto (aborto em caso de estupro por quê? O bebê não tem culpa, dizem eles, sugerindo que a mulher que é estuprada, tem), mulheres seguem sendo mortas em procedimentos sem a menor segurança.

No próximo domingo, dia 28 de setembro, dia latino-americano pela legalização do aborto, ocorrerão vários protestos, muitos deles, inclusive, lamentando as mortes de Jandira e Elizângela. São Paulo, Rio, Belo Horizonte e Porto Alegre são algumas das cidades com manifestações marcadas. As ativistas vão pedir apenas o direito ao próprio corpo.

Aos olhos de gente que absolve Jobson e o professor, será um desfile de assassinas.

Lola Aronovich é professora da Universidade Federal do Ceará, autora do blog Escreva Lola Escreva e colunista da RBA