Marcio Pochmann

Desenvolvimento, pobreza e democratização de oportunidades

Alguns 'especialistas' questionam as políticas sociais e econômicas no Brasil do século 21. O sucesso de alguns arautos do neoliberalismo seria o retrocesso do país a um passado que está a superar

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Opção por superar a pobreza extrema leva a iniciativas para ampliar acesso a bens e serviços públicos

A questão social no Brasil permaneceu por longo tempo sujeita à ação de um poder público que foi, na maioria das vezes, indiferente às necessidades do conjunto de sua população, especialmente nas camadas mais pobres. Na história do país há diversas passagens que ilustram bem essa constatação, contrastando com a experiência recente de enfrentamento exitoso da pobreza e desigualdade social.

Na década de 1890, por exemplo, o enfrentamento do trabalho escravo, que se constituiu num dos principais elementos conformadores da questão social contemporânea, teve importância o alerta de Joaquim Nabuco a respeito das insuficiências da simples abolição da escravatura. Sem a superação simultaneamente das instituições que auxiliavam a própria escravidão, como o monopólio das grandes propriedades rurais e a monocultura da produção agrária, a exigência do trabalho forçado a qualquer preço e condição se manteria fundamental aos brasileiros paupérrimos.

Um século depois, a complexa caminhada em torno da questão social conviveu com governos neoliberais que aprisionaram as políticas sociais ao contingenciamento dos ajustes fiscais em prol do pagamento da dívida pública. No ano de 2002, por exemplo, os recursos públicos comprometidos com juros da dívida equivaleram a 14,2% do Produto Interno Bruto (PIB), o que tornou viáveis os programas e ações sociais focalizados, de menor custo e abrangência, em contraponto às políticas universais estabelecidas pela Constituição Federal de 1988.

Como se sabe, somente a partir da primeira década de 2000 que a economia brasileira voltou a ganhar maior dinâmica, acompanhada que foi por uma melhora social generalizada, sobretudo na base da pirâmide social. A manutenção do enfoque universalista nas políticas públicas não impediu o Estado de tratar diferenciadamente os desiguais, como no caso do reforço ao poder aquisitivo do salário mínimo, à ampliação do crédito à baixa renda, à unificação e elevação real dos valores dos benefícios e universalização dos programas de transferência de renda ao conjunto dos segmentos vulneráveis, entre outras ações.

Mas para isso o programa de ajuste fiscal foi revisto, permitindo que em 2013, por exemplo, o gasto com juros da dívida pública respondesse por 5,7% do PIB, ou seja, 8,5 pontos percentuais do PIB a menos que em 2002. Assim, mais recursos puderam ser comprometidos com as políticas públicas orientadas ao enfrentamento da questão social no Brasil.

Os resultados dessa opção política foram evidentes e muito positivos, pois o país se transformou num dos poucos a frequentar o seleto grupo de nações que atualmente conseguem simultaneamente manter a estabilidade de preços, crescer e reduzir a pobreza e a desigualdade da renda. Tudo isso, é claro, afiançado pelo contexto favorável da economia nacional e pela reorientação das políticas sociais existentes.

Na sequência desses acontecimentos e procurando validar o entendimento alargado da questão social no país é que entrou em campo uma importante sofisticação das políticas públicas brasileiras. Por intermédio do compromisso governamental de superar a pobreza extrema, um conjunto de iniciativas governamentais convergiu com o pressuposto de que a superação da miséria requerer o combate às condições auxiliares da reprodução do processo de empobrecimento.

Nesse sentido, foi reforçada a transferência direta de renda aos miseráveis, principalmente nas famílias mais vulneráveis, ao mesmo tempo em que se articulou um conjunto de ações fundadas no desenvolvimento das habilidades e capacidades humanas. Para isso se tornou estratégico fazer chegar as políticas públicas a todos, na forma do acesso digno à renda, ao saneamento, à habitação, ao transporte coletivo, à eletricidade, é educação, à saúde, à capacitação, ao trabalho; enfim, ao conjunto de oportunidades que geralmente se encontravam disponíveis aos não pobres no Brasil.

Neste início do século 21, o desenvolvimento nacional passa pelo movimento maior de democratização das oportunidades geradas pelo país, que vão deixando de estar circunscritas a apenas uma parcela do universo da população. Na medida em que todos passam a ter o direito de participar diante da maior atenção das políticas públicas, o desenvolvimento significa também o fim da pobreza extrema e a redução da desigualdade.

Talvez por isso que alguns arautos do neoliberalismo sigam questionando medidas e critérios adotados pelas políticas sociais e econômicas no Brasil. Nesse caso, o seu sucesso poderia coincidir com a questão social retroagindo ao passado que se quer abandonar.

Marcio Pochmann é professor do Instituto de Economia e do Centro de Estudos Sindicais e de Economia do Trabalho da Universidade Estadual de Campinas