aposentadoria

‘Sarney é o misto de um Brasil que fica para trás e de um Brasil que quer nascer’

Ele continua vivo e ainda pode surpreender, como o fez agora, anunciando que abandona a carreira política, provavelmente, a mais antiga do Brasil

Antônio Cruz/Abr

A própria decisão de abandonar a política é por conta de perceber que talvez perdesse a eleição para senador

Em jornalismo, a gente chama a notícia sobre a morte de uma pessoa de necrologia. Às vezes, a gente prepara isso com meses e até anos de antecedência e deixa na gaveta porque a pessoa demora a morrer. No caso do senador José Sarney, não se trata disso. Ele continua vivo, e muito vivo como sempre, e ainda pode surpreender, como o fez agora, anunciando primeiro à presidenta Dilma e depois à imprensa, que abandona a carreira política, provavelmente, a mais antiga do Brasil. Deve ter uns 60 anos de carreira continuada. Ele tem 84 anos de idade.

Ser presidente da República em uma democracia política institucional é algo que implica que os ex-presidentes tenham respeito, quaisquer que tenham sido seus governos, orientação, como a de Fernando Henrique Cardoso com o neoliberalismo, Collor de Melo com a corrupção, Itamar com seus vai-e-vens. Ditadura é outra coisa. Então, não pode acontecer o que aconteceu no Itaquerão com a presidenta Dilma, porque mostra a face de uma direita carcomida, odienta e que não suporta conviver com as instituições da democracia republicana. Querem mandar e pronto. Quando não mandam, eles não respeitam.

Nós discordamos de Sarney ao longo de décadas e temos aqui o dever de fazer uma análise informando as contradições dessa personagem. Não é o jornalismo que ocorre hoje nos jornalões, que só sataniza o Sarney, esquecendo completamente os longos anos em que esses mesmos veículos compactuaram com ele, endeusaram-no.

Por exemplo, no Plano Cruzado, a CUT e os movimentos populares foram uma força política crítica aos aspectos populistas daquele plano. A mídia toda, Globo, Folha, Veja, Estadão, que hoje satanizam Sarney, endeusaram a medida. Ninguém fala, quando ataca as corrupções de Sarney, que ele é o detentor da transmissão da Globo no Maranhão. O que acontece com a figura do Sarney é que ele representa muito bem uma espécie de esquina entre o Brasil que está desaparecendo, o velho Brasil do caciquismo político. Ele é o grande cacique maranhense, assim como ACM na Bahia, Maluf em São Paulo… esses caciques estão morrendo de morte política. Alguns já morreram fisicamente, outros ainda não, mas é um fenômeno político que está desaparecendo.

O que é preciso lembrar de Sarney é que além da sua vocação, desde jovem estudante, até uma certa participação em eventos da UNE, ele também, desde muito cedo, foi metido a literato, a poeta. E em um estado que é de grandes poetas, como Gonçalves Dias, Ferreira Gullar, crítico mordaz de Lula e Dilma, mas nem por isso deixa de ser um importante poeta brasileiro. Nessas ações de juventude, Sarney foi preso em uma manifestação contra o Estado Novo, a ditadura de Vargas.

Depois ele se elegeu em 1965, um ano depois do golpe, derrotando o caciquismo tradicional anterior, nascendo aí um novo caciquismo, o de Vitorino Freire. Ele derrotou dois vitorinistas, um deles Renato Archer, que ele chamou para ser seu ministro depois, e teve um governo populista, cheio de contradições, convivendo com a elite maranhense, fazendo sinalizações para o povo mais pobre.

Na própria campanha, ele contratou ninguém menos do que Glauber Rocha para fazer um filme da sua campanha. Ele acabou não sendo usado… Glauber aproveitou mais tarde cenas desse filme para fazer o clássico Terra em Transe.

Depois de ter sido uma pessoa hesitante com relação à ditadura, ele se filiou à Arena e foi presidente nacional do partido por muitos anos. Mas, por exemplo, nos dias do ato de 5 de dezembro de 1968, aconselharam ele a não participar de uma homenagem, em São Luís do Maranhão, ao ex-presidente Juscelino Kubitschek. Ele foi, participou, fez um discurso de homenagem à JK, que dias depois foi cassado. Ele, sobretudo, é importante na história do Brasil pelo episódio trágico que impediu a posse de Tancredo Neves. Ele tinha migrado da Arena para o PMDB para compor a mesma chapa, e era uma figura daquela frente intermediária e liberal que nasceu rachando a antiga Arena.

A pergunta que fica é: o que teria sido melhor? Ele fazer essa migração que marcou esperteza, fisiologismo ou ele permanecer como um político reacionário, carcomido, antirredemocratização? A mesma coisa vale para um período mais recente, em que ele é parte de um conservadorismo de forças da direita que decidiram aderir ao governo Lula. Mais sendo apoiados pelo Lula do que o apoiando, na verdade. E apoiando Dilma, como faz agora. O que teria sido melhor: ele fazer o que fez e reconhecer esse novo que busca nascer no Brasil ou ele permanecer o velho defensor da Arena do regime militar? É um personagem contraditório.

Uma vez empossado presidente, seus primeiros atos foram a convocação da Constituinte, ele é o presidente da Constituinte, é responsável pela emenda que garantiu o voto de analfabetos, pela emenda que legalizou o PCB, ele reconheceu Cuba, que é uma sinalização muito importante de abertura à esquerda. Em dezembro de 1985, seu primeiro ano, assinou em Foz do Iguaçu, com o presidente argentino Raúl Alfonsin, a declaração que dá início à criação do Mercosul.

No seu governo teve como ministro da Justiça Fernando Lyra, um homem de esquerda, ao mesmo tempo em que seu governo foi um festival de concessões de rádio e de televisão com seu ministro Antônio Carlos Magalhães. Isso marcou o cenário hoje do Brasil que coloca a reforma dos meios de comunicação ao lado da reforma política como os dois grandes nós para decidir se o país vai seguir adiante no sentido democrático, ou se vai estacionar.

A própria decisão recente de abandonar a política é por conta da sua esperteza, de perceber que talvez perdesse a eleição para senador. Ele é pelo Amapá, o que é, em si, um escândalo político que ninguém levou a sério. Como que você vai respeitar instituições republicanas tendo como senador do Amapá uma pessoa que todo mundo sabe que é maranhense, que não tem nada a ver com o Amapá? É o Brasil velho que ainda não morreu.

Por último, ele poderia perder a eleição, assim como, eu não tenho dúvidas de que, no Maranhão, a melhor candidatura é a de Flávio Dino, não é a da família Sarney, que, no caso, é apoiada pelo PT pelas razões de análise nacional. Fiz uma audiência com ele quando era ministro dos Direitos Humanos envolvendo o tema dos direitos da pessoa com deficiência. ‘Presidente do Senado, eu vim aqui porque o senhor é a primeira pessoa que criou a primeira instância de defesa das pessoas com deficiência. Agora, 20 anos depois, eu quero que o senhor seja o senador que vai promulgar a convenção da ONU para pessoas com deficiência’. E ele me surpreendeu dizendo: ‘É, não foi só isso que eu fiz. Eu também assinei a Convenção Interamericana dos Direitos Humanos, que é da OEA, eu assinei também o Pacto dos Direitos Civis e Políticos’.

Estava ali o velho Sarney, o homem da Arena e da ditadura, dizendo para mim: ‘Veja como eu também tenho uma folha de serviços prestados aos direitos humanos’. Bom, a crônica que faço hoje registra na figura do Sarney esse misto de um Brasil que fica para trás e de um Brasil que quer nascer, mas ainda não nasceu.

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