Homossexualidade na telenovela brasileira: liberação ou reprodução de preconceitos?

Diversidade Sexual

CC/Divulgação TV Globo

O personagem Felix, da novela global O Amor à Vida, é antagonista e homossexual

São Paulo – O tema da homossexualidade, ou do homoerotismo, ou da homoafetividade, como preferem alguns, é praticamente sinônimo de polêmica em se tratando de Brasil, um país de ampla maioria cristã. Portanto, com uma população pouco simpática às relações sexuais fora dos padrões chamados heteronormativos, baseados nas relações homem x mulher, no casamento e no sexo para procriação. Nos últimos anos, devido à presença cada vez maior do tema na televisão e na Internet, principalmente, a polêmica parece ter crescido. E, para completar, a recente eleição de um pastor evangélico para a Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados, acusado de homofobia e racismo, bem como as declarações do Papa Francisco sobre os gays durante a Jornada Mundial da Juventude, realizada no Brasil – “quem sou eu para julgar os gays” -, acirraram os ânimos do povo, criando uma verdadeira divisão entre militantes contrários e prós homossexualidade.

Polêmica é sinônimo de audiência e a televisão brasileira está sabendo tirar muito bem proveito disso, em especial por meio do seu principal produto interno e para exportação, a telenovela. No horário das 21h, considerado o mais nobre da televisão, a atual novela, “Amor à vida”, da Rede Globo, bateu o recorde de personagens homoafetivos na trama, pelos menos três. Até a TV Record, cujo proprietário, o bispo Edir Macedo, é líder da Igreja Universal do Reino Deus, conhecida por seu fundamentalismo em se tratando da questão homossexual, já tem personagens gays em suas novelas. Mas a pergunta é: de que forma esses personagens são apresentados?

Irineu Ramos Ribeiro, autor do livro “A TV no armário”, lançado pelas Edições GLS, em entrevista a Adital afirma que nunca se falou tanto do tema na televisão brasileira e, para ele, o balanço atual é mais positivo do que negativo. Ou seja, as personagens estão cada vez mais próximas do que acontece na vida real. Na sua avaliação, a televisão teve que ceder às pressões de grupos gays organizados e da própria sociedade. “A mídia eletrônica só funciona na pressão e essa pressão demandava que fossem mostradas personagens gays de forma mais visível e menos jocosa”, afirma. Ele reconhece que o Brasil ainda está distante do nível de abordagem do tema por TVs de outros países, como a Alemanha e os Estados Unidos, e acredita que ainda há um longo caminho a percorrer, mas que a televisão brasileira vai chegar lá.

Nos EUA, para a construção de personagens homossexuais, os roteiristas consultam regularmente a organização não governamental Glaad (Gay & Lesbian Alliance Against Defamation). O objetivo é evitar abordagens que difamem e excluam cada vez mais a figura do homossexual. O Brasil está longe disso, mas ao mostrar personagens em situações e com caráter de gente “normal”, para Ribeiro, há uma clara evolução. É o caso, por exemplo, do casal Eron e Niko, de “Amor à vida”, em que um deles se envolve sexualmente com uma amiga mulher, e também do vilão Félix, uma das personagens de maior destaque da telenovela brasileira na atualidade (fotos). “Quando se mostra que um gay pode, eventualmente, ter relações sexuais com mulheres sem que, por isso, ele deixe de ser homossexual; ou que um gay pode ter falhas de caráter, isso está representando o que acontece na realidade”, salienta o escritor, que também é editor de uma revista de turismo gay, Via G, e membro do Centro de Estudos e Pesquisa em Comportamento e Sexualidade (CEPCoS).

Apesar de toda essa evolução, em pleno século XXI, manifestações de afeto e de relações sexuais ainda ficam de fora das cenas envolvendo as personagens homossexuais nas telenovelas brasileiras. Até hoje, só um beijo entre lésbicas foi registrado, na novela “Amor e revolução”, do SBT, em 2011. Os valores religiosos conservadores ainda seriam o principal motivo para a ausência de manifestações de afeto e de desejo sexual. Ribeiro afirma que, em relação ao sexo, principalmente, o forte caráter religioso da população brasileira ainda inibe esse tipo cena. Não por acaso, o livro de Ribeiro, lançado em 2010, revela como as emissoras ainda se pautam pelo preconceito.

Plábio Marcos Martins Desidério, professor da Universidade Federal do Tocantins, no artigo “Ficção e Homossexualidade na Tv Brasileira: de Eduardo e Hugo à Félix”, afirma que, mesmo que os escritores queiram abandonar estereótipos que foram e ainda são representados na televisão, eles acabam adotando representações da família tradicional, heterossexual, moderna e burguesa. Para ele, as mídias sociais talvez sejam, hoje, o principal termômetro em que os escritores e as emissoras utilizam para avaliar a produção televisiva.

No artigo “Personagens homossexuais nas telenovelas da Rede Globo: criminosos, afetados e heteressoxualizados”, Leandro Colling, pesquisador associado do Centro de Estudos Multidisciplinares em Cultura (CULT) e professor da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB), relata que, na década de 70, os gays nas telenovelas da Globo eram ligados com a criminalidade e a maioria era efeminada, afetada ou baseada em estereótipos. Na década de 80, a emissora começou a alternar personagens efeminados e afetados com personagens ditos “normais”, que não demonstravam nenhum traço que os distinguisse dos demais.

“Uma parte significativa dos personagens não mantém relação com ninguém e, quando isso ocorre, as cenas de sexo ou mesmo beijos não são exibidos. Ou seja, a televisão não mostra exatamente o principal aspecto que nos diferencia dos heterossexuais: com quem fazemos sexo. Além disso, a partir da década de 90, verificamos que, quando os personagens não são afetados, eles passam a se comportar dentro de um modelo heteronormativo”, assinala Colling.

 

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