Comparar panelaços de 2012 na Argentina com os de dez anos atrás é abusar da má-fé

Depois que decidiu mexer no vespeiro da concentração da comunicação, Cristina entrou no rol de perseguidos da mídia tradicional argentina – e brasileira (Foto: Reuters) São Paulo – Encorajados por […]

Depois que decidiu mexer no vespeiro da concentração da comunicação, Cristina entrou no rol de perseguidos da mídia tradicional argentina – e brasileira (Foto: Reuters)

São Paulo – Encorajados por parte da imprensa argentina e ecoados pela mídia tradicional brasileira, os panelaços dos últimos dias em Buenos Aires não têm, diferentemente do que se diz, qualquer conexão com os registrados pouco mais de dez anos atrás. A vontade de multiplicar os protestos contra a presidenta Cristina Fernández de Kirchner é a explicação mais plausível para tanta notícia sobre tão pouca coisa, deste e do outro lado da fronteira.

O último deles, na quinta-feira (7), exigiu “justiça, segurança e mudanças na economia”, conta o diário La Nación, como a sugerir uma gama de temas tão variados que reflete uma insatisfação generalizada dos argentinos. Foram “cerca de seis mil”, conta – na Argentina, um churrasco de domingo reúne mais gente. Como nos protestos diminutos dos últimos dois anos no Brasil contra “a corrupção”, os panelaços argentinos são convocados pelas redes sociais, primeira diferença em relação aos de dez anos atrás, quando a Praça de Maio, em frente à Casa Rosada, havia se tornado em natural ponto de encontro para demonstrar a insatisfação com o governo de turno, e seis mil era o número de pessoas por metro quadrado – se permitem o exagero.

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A convocação dos atos é atribuída ao perfil de Facebook El Cipayo, referência aos membros da tropa de elite da cavalaria do exército otomano. O “Decálogo do Cipayo” define a si como “um ilustrado” que “procura aprender e conhecer para ter um pensamento crítico”. De novo, nada que fuja muito às aspirações dos movimentos brasileiros: são poucos porque são os primeiros a enxergarem a desgraça na qual está metido o país, o caos, a desordem. Os demais, iludidos por esmolas, precisam ser resgatados da cegueira na qual foram metidos.

“Cristina, devolvam o país”, dizia uma bandeira reproduzida pelo La Nación, jornal que apoiou o golpe de 1976, responsável pela morte de 30 mil pessoas, e batizado por alguns como “Processo de reorganização nacional”, ou simplesmente “El Proceso”. Os manifestantes estão irritados com as restrições à compra e à venda de dólares, motivo último pelo qual foram às ruas.

Um convite às falsas comparações: a gota d’água para o início dos panelaços de dezembro de 2001 foi o “corralito”, que restringiu os saques em bancos a uma quantia ínfima com a qual, de fato, era difícil viver, e os cortes à conversibilidade, acabando com dez anos de mentiras nos quais se dizia que um peso valia um dólar. 

Agora, porém, a economia vive momento sumamente diferente. A queda de popularidade da presidenta pode até ocorrer, dado que a aprovação a seu governo beirava a totalidade no ano passado e era altamente influenciada pelas eleições nacionais, um fenômeno comum em época de debate político acirrado. Porém, nada que cheire à unanimidade nacional às inversas obtida por Fernando de la Rúa. Em dezembro de 2001, o comandante da Casa Rosada mostrava-se desconectado da realidade e alheio aos problemas nacionais, outra questão da qual Cristina mantém um caminhão de distância. 

O desemprego atingia uma quarta parte da população, e a pobreza era realidade para pouco mais da metade. Hoje, ainda que se faça a ressalva sobre possíveis equívocos nos dados oficiais, a desocupação atinge 7,4% dos argentinos e, no segundo semestre de 2011, 1,7% dos argentinos viviam abaixo da linha de pobreza. Agora, a economia deve começar a desacelerar após uma década de crescimento contínuo – nada que não se esperasse já no ano passado, e nenhuma novidade em termos de relações entre economia enfraquecida e desgaste de um governo.

Segundo a agência Reuters, na última quinta-feira os manifestantes “não tinham cartazes nem bandeiras de partidos políticos”, uma suposta demonstração de pureza, como a garantir que sobre eles não pesa qualquer manipulação de finalidade partidária. Setores da imprensa, como se sabe, na América do Sul se comportam como partidos políticos. Novamente tropeça a mídia tradicional no afã de promover paralelos entre a Primavera Árabe ou os protestos espanhóis e uma manifestação comum contra um governo democrático. De novo, nada que não se tenha visto no Brasil durante os tais atos contra a corrupção. 

A imprensa brasileira, aliás, compra com facilidade o discurso reproduzido por Clarín e La Nación, os dois principais grupos midiáticos da nação vizinha. Solidariedade corporativa: Cristina Kirchner entrou para a lista de desafetos de alguns veículos nacionais depois que decidiu levar adiante a regulação da comunicação. Desde então, busca-se uma maneira de mostrá-la como anacrônica, ridícula, “da turma de Hugo Chávez”, o presidente venezuelano. Antes da morte do marido, Néstor Kirchner, era tida como um fantoche. Após a morte, quando não havia mais como ocultar que tinha personalidade e governo próprios, passou ao rol de autoritários e populistas. Por fim, nada que não se tenha visto no Brasil.