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Estou fora da lista, mas posso explicar: eu também sou um detrator!

Estar na lista não é honra, porque neste governo nada se abriga sobre a palavra “honra”. Mas não ser considerado detrator por ele “compromete o currículo”

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“A lista dos improdutivos” da USP entregue ao então reitor e vazada para a Folha estressou a comunidade e complicou a situação de Goldemberg. Detrator de governo é quase honra; mas pesquisador "ïmprodutivo" é pior que ofender a mãe

Lembro-me do episódio jornalístico e acadêmico que no passado ficou conhecido com o nome de “A lista dos improdutivos”. Na ocasião, eu era vice-presidente da Associação dos Docentes da USP. O então reitor da USP, José Goldemberg, recebeu uma lista de professores da instituição que não tinham nenhuma publicação registrada nos relatórios entregues aos canais competentes, durante o ano anterior. Por estas estranhas alquimias, a lista foi parar nas mãos de jornalistas da Folha de S.Paulo. E o jornal, numa edição de domingo, publicou a relação de nomes, sob o título injuriante de “A lista dos improdutivos”. Isto virou um rumoroso caso, com processo judicial, debates acalorados, gente querendo depor Goldemberg. Houve até quem perdesse a voz por ter seu nome assim exposto em praça pública, como se fosse num antigo pelourinho. Vamos e venhamos: ser improdutivo é pelo menos duas vezes pior que ser um detrator.

Governo Bolsonaro faz monitoramento de jornalistas e lista ‘detratores’

A Folha, tentando se redimir, organizou um debate sobre a questão em seu auditório. Muito concorrido, o debate contou com uma série de intervenções. Numa delas, das mais hilárias, o saudoso Eder Sader, irmão do Emir Sader, declarou: “Meu nome não está na lista. Mas eu posso explicar”. Lembrei-me do episódio agora, por causa da divulgação da lista elaborada pela BR+ Comunicação, de jornalistas e professores (chamados, pela moda, de “influenciador” ou “influencer”) considerados “detratores” do governo, em especial do ministro Paulo Guedes que, pelo que aparece nas publicações, foi pelo menos um dos que pediram a elaboração da listagem, ao custo de 2,7 milhões de reais.

Lembrei-me disto porque me veio a mente a mesma frase: “Eu não estou na lista. Mas posso explicar”. Meus artigos devem passar despercebidos pelo governo, é tudo. Mas quero afirmar, em caixa alta: “EU TAMBEM SOU UM DETRATOR”. Porque não estar na lista compromete o currículo.

Como vou explicar isto para meus familiares, amigos e leitores?

Talvez seja porque eu não tenha canal no youtube. Mas não: tem gente que não está no youtube e entrou na lista. Terão dado algum jabá para a empresa que a elaborou? Foi o que me ocorreu. Não, não deve ser isto. De todo modo, fica a mágoa, a nódoa de não estar na lista. Por isso mesmo, estou lançando a campanha “EU TAMBEM SOU UMA DETRATORA OU UM DETRATOR”.

Há mais o que comentar. A primeira coisa é que há uma situação pior do que esta de não estar na lista. É a de quem entrou nas duas listas paralelas a esta, elaboradas pela mesma idônea empresa, a dos “neutros” e dos “favoráveis” ao governo. A estes só resta olhar para cima, e sair de fininho, assobiando, como se nada houvesse acontecido, com se não fosse com eles, como se não fosse um atestado de inoperância ou de vocação para, respectivamente, sabonete de glicerina ou capacho.

A segunda coisa é que, dando continuidade a seu programa de agrado aos mercados, o governo privatizou a arapongagem . Na época da Ditadura de 64, também havia elaboração de listas: as de “terroristas”, as dos que “prejudicavam a imagem do Brasil no exterior”, as dos cassados pelos atos institucionais, as dos expurgados das universidades e escolas, dos quartéis etc. Havia o concurso da deduragem, é verdade, mas as listas traziam o timbre do Estado. Agora não.

Sem-vergonhice remunerada

Estas listas de hoje têm o timbre do “Mercado”, da grana paga, da sem-vergonhice remunerada a preço módico. Pergunto-me: terá havido licitação para determinar que empresa faria a listagem? Se não houve, qual teria sido o critério utilizado para a escolha? Renovo a questão: houve algum jabá? Alguma política de favor nos bastidores?

Terceira consideração: como disse o Emir Sader, que está na lista, isto não é uma honra, porque nada do que vem deste governo pode se abrigar sobre a palavra “honra”. Este governo não pode carimbar com aquilo que não tem. Ademais, como lembraram alguns dos outros inclusos na lista dos “detratores”, isto envolve algum risco para eles ou elas e os familiares. Porque além de privatizar a arapongagem, a retórica deste governo terceiriza a violência.

Uma das características do Estado Moderno é a reivindicação do monopólio da violência. Mas a política do Estado Fascista é a sua terceirização. Há milhares de partidários do governo que se acham no direito de insultar, agredir, espancar, até matar, em nome de proteger “as pessoas de bem” dos “comunistas”, ou seja, dos que pensam de modo diferente do deles. E isto põe em risco a saúde e a segurança dos que viram alvos desta sanha insana, mas que tem método. Ainda assim me arrisco a declarar e a lançar esta campanha nacional: “EU TAMBEM SOU UM DETRATOR DESTE GOVERNO”. Agora, se alguém me chamar de “influenciador” ou de “influencer”, eu já vou avisando que perco a calma e taco a mão.