real e imediato

Um pesadelo chamado corona

O que o surto de coronavírus está mostrando é que a malignidade estrutural é própria do sistema em que estamos vivendo

Nucleo Operativo Protezione Civile/Fotos Públicas
Nucleo Operativo Protezione Civile/Fotos Públicas
Aeroporto de Florença, uma das cidades mais visitadas do mundo, praticamente vazio. Coronavírus é ameaça real, num mundo sempre forjado como ideal

Nosso preclaro e idiota presidente minimizou até agora o perigo do coronavírus. Vamos ver o que ele vai fazer daqui por diante, que o perigo está rondando a sua cola – e a do seu amado Trump, por causa do seu secretário de Comunicação, o ínclito Wajngarten.

O objetivo do obtuso presidente era claro: reconhecer que o vírus é um perigo implicaria em pedir o cancelamento das manifestações do dia 15, o que equivaleria a solicitar uma eutanásia política em sua queda de braço com os demais poderes da República que ele não reconhece.

Bolsonaro prefere então por em risco até a saúde de seus mais fanáticos adeptos a arriscar um suicídio político prematuro, motivado por sua própria ambição de golpear os demais poderes da República e instalar um clima favorável a um golpe de estado. Este jogo de xadrez em que o presidente aposta tudo, bispos, cavalos, torres, até sua rainha, a aura de mediocridade de seus pronunciamentos, para mobilizar seus peões, atesta, na verdade, o caráter fantasmal do vírus corona.

Bolsonaro quer reduzi-lo à dimensão de um fantasma. Não precisa. Ele é um fantasma, embora não do jeito que ele pretende que seja.

Um fantasma não é necessariamente uma ilusão; é uma aparição de algo que atormenta. E no caso do coronavírus, o que nos atormenta? Além da ameaça da doença, sobretudo para os mais idosos e desprotegidos, o que nos atormenta é a aparição do total despreparo de inúmeras autoridades – a começar pelo nosso covarde presidente – para enfrentar a situação.

Aqui na Europa a situação não é muito diferente, embora ninguém cometa as bravatas de Bolsonaro. Na quarta-feira (11), a chanceler Angela Merkel, mais o ministro da Saúde alemão, Jens Spahn, deram uma entrevista coletiva, acompanhados pelo diretor do Instituto Robert Koch, o equivalente ao Instituto Adolfo Lutz de São Paulo.

Tirando o cientista, que falou coisas científicas, tanto Merkel quanto Spahn não tinham muito a dizer, exceto que estavam preocupados com a situação, o que é louvável e, convenhamos, é mais do que Bolsonaro comunica ao povo brasileiro, tanto àqueles que o elegeram quanto aos que não o elegeram. 

Estamos vivendo um clima de confinamento distribuído em pílulas. No momento em que escrevo esta nota, fico sabendo que a partir de amanhã (sexta-feira 13) todos os museus de Berlim estarão fechados. Ao mesmo tempo, recebi por email um comunicado da Haus der Kukturen der Walt, uma das instituições culturais mais importantes da cidade, da Alemanha e da Europa, dizendo que sua programação está cancelada por várias semanas.

As manifestações do 1˚ de Maio estão canceladas, bem como o Carnaval das Culturas, no Dia de Pentecostes, 31 de maio, foi cancelado. As bibliotecas acabam de ser fechadas. Mas vem tudo assim, num clima de lerdeza e atropelamento.

Lerdeza e atropelamento

Com exceção dos chineses e de alguns outros países, como Cingapura e Cuba, a reação das autoridades foi lenta e despreparada. Atropelamento: em consequência, quando as medidas adequadas são anunciadas, elas vêm atropeladas e atropelantes. Na Itália, tudo está completamente fechado, com exceção das farmácias.

Os países estão se fechando: Trump mandou suspender todos os voos da e para a Europa continental. A Guatemala fez o mesmo. El Salvador proibiu a entrada de estrangeiros de qualquer país. Na Índia, a entrada e a saída de alemães está proibida, junto com a de cidadãos italianos e de mais alguns países. Tenho uma amiga que está agora confinada lá, por ser alemã.

O clima está ficando caótico. Nos supermercados começam a faltar gêneros duráveis, de arroz a papel higiênico, de purê de tomate a desinfetantes.

Mas não são só os governantes que estavam despreparados (afinal, no mundo idílico do império dos mercados não devem nem podem acontecer catástrofes). Muitos dos governados também estavam. 

Explico, recorrendo ao exemplo do filme Outbreak, de 1995, que no Brasil foi lançado com o nome de Epidemia.

Um vírus parecido com o Ebola aparece no Zaire. Por artimanhas de militares inescrupulosos ele é trazido para os Estados Unidos para ser “arquivado” como arma biológica. Mas ele escapa do controle porque o macaquinho portador, contrabandeado do Zaire, foge, e contamina seu vendedor, que contamina mais gente, e tudo, por fim, ameaça uma pequena cidade americana, Cedar Creek, onde o enredo se desenvolve.

O fundamental deste enredo (não vou conta-lo na íntegra, para não estragar o suspense de quem não viu o filme, baseado num fato real) é que o desencadear do vírus comporta: 1. um surto no fim do mundo, Zaire, Terceiro Mundo, lá longe; 2. uma teoria conspiratória que expõe a presença de homens malignos dispostos a fazer o mal para a humanidade, sobretudo seus conterrâneos do Primeiro Mundo. Ou seja, mesmo envolvendo uma malignidade estrutural (militarismo), ele é algo episódico. 

O que o surto de coronavírus está mostrando é que a malignidade estrutural é própria do sistema em que estamos vivendo. Ela tem a mesma raiz do despreparo estrutural de governantes e governados para enfrentar a crise financeira de 2007/2008, que não foi resolvida até hoje, e vem abrindo as comportas da destruição de direitos do mundo do trabalho no mundo inteiro.

Enquanto isto, nosso presidente se diverte. Agora monitorado, arriscando uma quarentena.

Que, esperemos, sem prejuízo de sua vida, dure toda ela.