Rumo incerto

O coronavírus e a esperança de que o liberalismo seja posto em xeque

Há quem acredite que a pandemia fará a ópera do neoliberalismo chegar ao fim. De fato, seria bom demais. Mas tenho minhas dúvidas

cruzvermelha-italia/divulgação
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Pandemia pegou o mundo de surpresa e o que virá depois dela ainda é desconhecido

O coronavírus pegou todo mundo de surpresa. Chineses, italianos, alemães, norte-americanos, japoneses, coreanos e brasileiros. Mas, entre estes, houve uma exceção: os bolsonaristas. Pois para estes o surto de corona não passa de um acontecimento midiático destinado a semear o pânico, insuflado pelas esquerdas para paralisar a economia, o país e sobretudo seu ídolo, o “mito”, o que estará sempre anunciando – sem corroboração cabal e médica até aqui – que não pegou a doença. Até o “General Chilique”, aquele da porrada da mesa e da condenação de Lula à prisão perpétua, pegou. Sem falar na mais de dezena de sua comitiva na desastrada e desastrosa viagem aos Estados Unidos.

Entre as esquerdas, medra uma esperança: a de que, com suas catástrofes, o vírus ajude a enterrar os paradigmas do neoliberalismo. Em diversos pontos do globo (que continua sendo esférico) se sucedem intervenções do Estado para socorrer empresas e também os mais pobres e necessitados. Na Espanha e na Itália, por exemplo, estatizam-se hospitais privados. Requisitam-se leitos, até mesmo em hotéis.

Guedes que fique repetindo a ladainha das privatizações. Com o baque econômico, o governo italiano fala até em estatizar a combalida (já de antes) Alitalia. Na Alemanha, a Lufthansa pede socorro. A British Airways idem. Os Estados correm para socorrer os trabalhadores autônomos. Até o Guedes, acima referido, decidiu falar em conceder um auxílio de 200 reais por mês aos autônomos brasileiros! Coisa pífia, mas sinal dos tempos.

Há quem acredite que a ópera do neoliberalismo esteja chegando ao fim. De fato, seria bom demais. Mas tenho minhas dúvidas.

A tenacidade dos arautos dos planos de austeridade e do neoliberalismo é de natureza messiânica. Embora sem um messias explícito, com exceção do Jair, do Trump e agora do Boris Johnson.

Faz parte da matriz messiânica a crença – supersticiosa – de que a “concentração das vontades” é o grande aríete que abre o caminho para o advento do Esperado Messias. E que, se num dado momento, esta concentração não conseguiu seu objetivo, foi porque ela não se demonstrou suficiente, foi fraca e não chegou à altura de propiciar o advento do esperado Esperado.

O fracasso subsequente é apenas a prova da necessidade de uma maior e melhor concentração, mais intensa. Por isto mesmo o fracasso é visto como uma necessidade de intensificar a futura nova concentração.

Este modo de pensar , que estudei num ensaio chamado A estrutura da espera (publicado pela primeira vez em alemão, com o título Der Sebastianismus in ‘Os Sertões’, von Euclides da Cunha, na Universidade de Colônia, em 1998, e em português, no ano seguinte, em revista da Universidade de Bauru), é normalmente associado a “sociedades rústicas”, camponesas, como nos casos brasileiros de Canudos no sertão da Bahia, do Contestado em Santa Catarina, ou dos Mucker no Rio Grande do Sul, além de outros.

No ensaio, entretanto, eu estendia o estudo – sobre a permanência de uma mitologia de origem sebastianista em nossa paisagem política – a casos como os de Getúlio Vargas e Tancredo Neves, este último o presidente que não veio e por isso mesmo foi vindo e sacramentou a Nova República, que por ora agoniza nas mãos desta paródia cruel e rebaixada de mito sebastiânico que é Jair Messias.

Nos casos das lutas camponesas acima aludidas, tudo terminou em cruéis banhos de sangue. Mas os fiéis seguidores dos seus líderes religiosos, que por vezes tinham menos de messianismo e mais de pensamento profético, como no caso de Canudos, lutaram ate o trágico fim imbuídos de que seu sacrifício, se não instituiria o prometido reino desta vez, faria parte do caminho para conseguir que, no futuro, ele se concretizasse.

Claro: ao falar do neoliberalismo, estamos muito longe desta aura de auto-sacrifício. Porque os arautos da superstição neoliberal falam incessantemente do sacrifício… para os outros. Mas insistem na mesma tecla – embora num teclado diferente – de que, se suas ideias continuamente fracassadas não deram certo, foi por causas externas a elas, e pela falta de fé dos outros agentes, que não aceitam a sua cota de sacrifício porque são movidos por ideias nefastas como a da repartição mais ou menos igualitária de benesses e deveres sociais.

Aliás, estes arautos – no governo ou na mídia – sequer reconhecem seus fracassos. Descrevem-nos como sucessos. E batem e batem na mesma tecla já quebrada por tanta insistência, como faz o xamã econômico do momento, o insuportável Paulo Guedes, que de nada entende, nem mesmo do que fala.

Aqui na Europa e nos Estados Unidos, as histórias se repetem. A hegemonia, é verdade que hoje mais abalada do que nunca, permanece com os ideias de austeridade fiscal, de perdas de direitos (embora sem a dramaticidade do que ocorre no Brasil), coisa imprescindível para que a sociedade possa “sobreviver”.

Tal foi o mote da literal rendição dos partidos social-democratas, socialistas e parte dos Verdes ao ideário neoliberal depois do fim das sociedade comunistas do antigo Leste Europeu. E este á ainda o mote de um sem número de comentaristas nas mídias, para os quais qualquer proposta que se afaste dos neoliberalismos econômicos é imediatamente tachada de “populista”, seja à direita, seja à esquerda.

Pode ser que parte deste establishment neoliberal se converta a uma visão mais equilibrada da necessária presença do poder público para corrigir as desigualdades sociais. Não duvido.

Mas também não duvido de que uma boa parte dele, assim que puder, voltará às mesmas ladainhas de sempre para defender o status quo do pensamento econômico hoje predominante. Elas pertencem à sua versão da “estrutura da espera”.