Ascensão perigosa

A Alemanha à beira de um ataque de nervos

Uma combinação de fatores leva a um cenário de instabilidade geopolítica, econômica e social no país de Angela Merkel. Na esteira da síndrome, o continente europeu também treme

©wsws.org
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Manifestação em Erfurt, na Turíngia, estado da Alemanha, contra avanço da extrema-direita no país

O establishment alemão está à beira de um ataque de nervos. Consequentemente, o país inteiro o acompanha. E na esteira da síndrome, o establishment europeu também treme. As causas são três, mas todas elas convergem para um ponto em comum: a extrema-direita, se não chegou ainda ao controle da banca política, está distribuindo o baralho, isto é, dando as cartas.

Primeira causa: a eleição do governador do estado da Turíngia. O que aconteceu? No sistema parlamentarista alemão, os eleitores elegem o parlamento e este escolhe o governante, como se fosse um primeiro-ministro.

Na eleição de outubro passado, a coligação governista, formada pelo Partido Die Linke (A Esquerda), o Partido Social-Democrata (SPD) e os Verdes, perdeu a maioria absoluta, mas se manteve como a frente mais votada, com a Linke liderando a votação. No último 5 de fevereiro, procedeu-se a escolha do novo governo.

Apesar de não ter mais a maioria absoluta, a coalizão, liderada por Bodo Ramelow, da Linke, tinha condições de levar adiante um governo minoritário, pois detinha 42 das 90 cadeiras do Parlamento. Dois dos partidos de oposição, a União Democrata Cristã (CDU), que é o partido da chanceler Angela Merkel, e o FDP, liberal, uma espécie de DEM alemão, lançaram um candidato pro-forma, Thomas Kemerich, deste último, que tem apenas cinco deputados no Parlamento.

O Alternative for Deutschland, AfD, de extrema-direita, lançou um fake-candidato, que nem sequer era membro do partido ou do Parlamento.

Diz a regra que nas duas primeiras votações, o vencedor deva ter maioria absoluta, coisa que não aconteceu. Na terceira votação, basta ter maioria simples. O que todos esperavam é que Ramelow, cujo governo fora bastante elogiado, vencesse o pleito.

Daí aconteceu a surpresa: o AfD abandonou seu candidato e jogou seus votos em Kemerich, que derrotou Ramelow pela diferença de um voto (!). Seguiu-se um terremoto nacional, com ressonâncias pela Europa inteira.

Era a primeira vez, desde o fim da Segunda Guerra, que um partido de extrema-direita decidia uma eleição em algum parlamento do país. Acenderam-se luzes de alarme em Berlim, Bruxelas (sede executiva da União Europeia), Paris, Amsterdã, Madri, e outros centros políticos do continente.

A chanceler Angela Merkel, que visitava a África do Sul, deu uma declaração, dizendo que aquilo era “inaceitável”.

A nova líder da CDU, Annegret Kramp-Karrenbauer, condenou a atitude da CDU da Turíngia, acusada de ter negociado nos bastidores com o AfD, mas – sentindo-se afrontada em sua autoridade – renunciou à liderança.

A CDU deu mostras de estar dividida entre aqueles que seguem a orientação de Merkel e os que pensam valer tudo para “deter a esquerda”, inclusive uma aliança com o AfD.

O líder nacional do FDP reuniu-se com Kemerich e o convenceu a não aceitar a eleição.

Entrementes, o líder do AfD da Turíngia, Björn Höcke, conhecido por seu extremismo de direita, festejava o estrago que causou.

De momento, dois impasses continuam sacudindo a Alemanha: o que acontecerá na Turíngia? Conseguirá a CDU local negociar com a Linke, coisa que ela sempre rejeitou, por princípio? E quem sucederá Karrenbauer na liderança da CDU?

Um dos candidatos mais cotados para a função é Friedrich Merz, opositor de Merkel, a quem considera inclinada demasiadamente à esquerda, por sua política de abertura em relação a imigrantes, refugiados e muçulmanos de um modo geral. 

Segunda causa: numa blitz realizada em 13 cidades de seis estados alemães, a polícia deteve 12 acusados de pertencer a uma célula de extrema-direita e de planejarem atentados contra mesquitas, muçulmanos, refugiados e políticos  que consideram tolerantes para com eles – de vários partidos, não apenas de esquerda.

Entre os detidos figura um policial, o que acendeu mais luzes de alarme pelo país e que repercutiram de imediato na Europa toda. Há suspeitas, por exemplo, de que este grupo de detidos, cuja organização data do ano passado, tenha ligações com o grupo finlandês, também de extrema-direita, “Soldados de Odin”, fundado em 2015.

O grupo, a que foi dado um dos nomes do deus da guerra (e de outras atividades) das mitologias nórdica e germânica, tem conhecidas ramificações em outros nove países europeus, inclusive na própria Alemanha, além de nos Estados Unidos e no Canadá.

A extrema-direita alemã está na mira policial desde o assassinato do político Walter Luebcke, da CDU, no ano passado, numa cidade perto de Kassel, tido como demasiado tolerante em relação a refugiados e estrangeiros.

Terceira causa: Merkel e a situação geopolítica. A União Europeia está sendo acossada pelo governo de Trump na guerra fiscal de seu governo contra o mundo e na guerra particular deste contra o acordo sobre o programa nuclear do Irã.

Além disto, Trump quer que a Alemanha suspenda o acordo com a Rússia que prevê a construção de um gasoduto da Rússia para o Ocidente. De quebra, há, ao lado, as complicadas negociações com a China, que a Europa necessita mas ao mesmo tempo teme pelo peso maciço da economia do gigante asiático.

Para engrossar este caldo já suficientemente espesso, o surto de corona-vírus despertou outro surto, desta vez na Europa, em particular na Itália, de ataques violentos contra chineses e orientais suspeitos de o serem, mesmo que não o sejam, como “inimigos” que estão “envenenando” o continente.

E para completar a insegurança, espera-se a retirada da cena política alemã e europeia por parte da chanceler a partir de 2021. Merkel está em seu quarto mandato à frente do governo de Berlim e indiscutivelmente foi e ainda é a grande liderança, o verdadeiro fiel da balança, que mantém a coesão da U. E. O presidente francês Emanuel Macron, que pretende sucede-la neste papel, ainda não passa de uma vaga e incerta  promessa. A situação do Reino Unido, com a liderança do incômodo (para dizer o mínimo) Boris Johnson, aumenta as doses de incerteza, inclusive por sua proximidade com Trump. E em vários países do antigo Leste Europeu a cena política vem sendo dominada por quadros políticos de extrema-direita ou com tendência para tal.

Diante deste verdadeiro oceano de incertezas, os fantasmas da década de 30 saíram do armário e pairam no horizonte. Naquele momento o afã de combater as esquerdas abriu o caminho para a ascensão do Partido Nazista, de Adolf Hitler.

O quadro de hoje pode ainda não ser tão terrivelmente ameaçador, mas é claro que a “pax europeia” está a perigo.