sem preconceito

Palavras e expressões que zerei no meu dicionário. Por Flávio Aguiar

Difícil de removê-las do dicionário formal, termos estão definitivamente riscados do nosso mapa linguístico

MARCOS SANTOS/USP IMAGENS
MARCOS SANTOS/USP IMAGENS
Com o presidente Bolsonaro, há certas expressões do nosso jargão político que são preconceituosas e continuam deslizando impávidas

Não dá para eliminar palavras e expressões de um dicionário. Não é uma atitude acadêmica. Mas é possível zerá-las. Reduzir ou ir reduzindo a zero seus efeitos.

Nas últimas décadas muitas palavras e expressões preconceituosas vêm sendo progressivamente zeradas. Não são eliminadas, pois, gostemos ou não, fazem parte da nossa história e da nossa formação. Apesar dos esforços do atual governo federal e de seus fiéis, mais seu guru da terraplanagem da inteligência, é o caso de termos ligados a preconceitos de gênero, de homofobia, discriminações regionais, nacionais, culturais e até religiosas. Dou alguns exemplos, entre os que estão em declínio ou foram definitivamente riscados do nosso mapa linguístico. Riscada: a expressão “negro de alma branca”. Em franco declínio: “aquela mulher”, expressando desprezo moral.

Quando criança, nas festas de família, eu preferia ficar escutando a conversa das mulheres à dos homens. Estes, que ficavam na cozinha em redor do barril de chope, se fosse verão, ou do garrafão de vinho, se fosse inverno, tinham conversas insípidas sobre carros, trabalho, custo de vida, empregos, até política, não no sentido de fazer análises, mas no pavoneamento de algum que tivesse encontrado um deputado ou governante.

Até cavalos entravam nas conversas, pois um de meus tios era proprietário de alguns no hipódromo e outro era um estancieiro no gélido planalto gaúcho. Já a conversa das mulheres era rica em explorar as novidades íntimas, quem se separara de quem, quem fora morar no Rio de Janeiro, quem estava para se desquitar (divórcio não havia), quem se casara no Uruguai ou na Embaixada do México etc. Invariavelmente, quando aparecia a expressão “aquela mulher”, eu já sabia: vinha chumbo de calibre grosso.

Outra expressão em franco declínio, com permissão de quem lê: “puto”, no sentido brasileiro, de homossexualidade masculina (em Portugal a expressão continua de vento em popa, pois é sinônimo de “menino pequeno”). Idem, “sapatão” para seguidoras de Safo, a grande poeta da ilha de Lesbos, na Antiguidade. Infelizmente esta tendência não chegou ainda aos palavrões e injúrias. A mãe do sr. juiz (de futebol) continua a ser a principal vítima destes preconceitos. Mas estamos pisando numa área de difícil evolução, pois quando somos tomados de “forte emoção”, seja positiva ou negativa, recorremos ao fundo do baú do que aprendemos em nossos anos de formação.

Lembremos também que os palavrões podem ter também uma conotação positiva, quando até transcendem as fronteiras de gênero. Novamente pedindo permissão, dou um exemplo: “o Didi, campeão mundial em 58 e em 62, era um puta dum jogador, pra mim maior que o Pelé”. Arrisco dizer que ninguém vai se escandalizar, pelo menos em demasia. E isto varia de cultura para cultura. No Québec, província francófona do Canadá, se você disser coisas como “merde”, “cul” etc. no salão, ninguém vai se chocar. Já se você disser tabarnak, derivação de tabernacle, aquele armarinho no altar católico onde se guardam as hóstias consagradas, e o vinho bento, vai ter gente pulando pela janela de tanto horror e rubor. Mas aqui também há a possibilidade do sentido positivo: “Guy Lafleur était le plus grand jouer de hockey, le tabarnak!” Traduzindo livremente, e novamente contando com a vossa compreensão linguística: “Guy Lafleur era o maior jogador de hóquei, o fia da puta!”.

Entretanto, há certas expressões do nosso jargão político que são preconceituosas e continuam deslizando impávidas “num lago azul” ou “nos verdes mares de norte a sul”. A eleição de um presidente cujos neurônios cerebrais teimam em se repelir mutuamente intensificou o uso destas expressões que, por assim dizer, eu decidi zerar no meu dicionário, deletando-as de meu repertório ativo. Dou abaixo alguns exemplos.

Tupiniquim, como sinônimo de coisa atrasada, burra, menor, coisa praticada ou pensada no Brasil e inferior ao que se pensa em países vistos como culturalmente mais e melhor desenvolvidos. São comuns as expressões “razão tupiniquim”, “pensamento tupiniquim”, “hábito tupiniquim” etc. Não sou antropólogo nem especialista em linguagens dos povos primevos do Brasil, mas arrisco alguns comentários. Os assim chamados “tupiniquins” receberam esta denominação dos auto-considerados “tupinambás”. Como qualquer outro povo do mundo, os tupis (e seus irmãos ou primos guaranis) cultivavam muitos preconceitos, inclusive entre si. “Tapuia”, por exemplo, era um termo tupi aparentemente usado para designar os nativos interioranos que não falavam o tupi-guarani. Era um sinônimo aproximadamente de “bruto” ou “inculto”.

“Tapuitama”, diz o caboclo narrador do conto Meu tio, o Iauaretê, de Guimarães Rosa, referindo-se ao sertão bravio, ainda não “domesticado” pela expansão das fazendas e do gado que vão destruindo a flora e a fauna naturais do “deserto”, termo que designava não apenas terras áridas, mas genericamente “terras ignotas”, com escassa ou nenhuma presença do homem “civilizado”. A Amazônia, lembremos, era o “deserto verde”.  E os tupis cultivavam também preconceitos entre si. Lembremos que os tupi-guaranis eram um povo guerreiro, nômade e migratório (ou vários povos de um mesmo tronco linguístico), pelo que pude ler, que migraram do norte para o sul do continente sul-americano e do interior para o litoral (os tupis), e foram progressivamente se estabelecendo como “sedentários”, num processo em que o poder dos “xamãs” ou “pajés” era progressivamente disputado e substituído pelo dos “caciques” (Sepé Tiaraju, o legendário capitão que liderou a resistência contra os espanhóis e portugueses na Guerra das Missões, no século XVIII, era “cacique”, “corregedor” e “capitão” da Missão de São Miguel, em cuja catedral fora batizado).

Assim, os auto-proclamados “tupinambás” se consideravam os que “tinham chegado primeiro”, e denominavam os outros, “recém chegados”, embora da mesma “família”, como “vizinhos”, “a gente ao lado”, ou seja, os “tupiniquins”. Eram todos – nambás, niquins, guaranis, “tapuias” – povos de sociedades extremamente complexas e sofisticadas, embora não tecnologicamente, aos olhos também preconceituosos dos europeus que para o futuro Brasil trouxeram suas cobiças e doenças. Para estes últimos, com exceção de alguns jesuítas, que também tinham seus preconceitos, os nativos – todos – eram gente “sem cultura”, “sem nada”, canibais (hoje em dia se duvida, e muito, do canibalismo atribuído a estes povos). E isto gerou enormes confusões. Veja-se o romance O Guarani, um dos fundadores de nossa autonomia cultural diante da metrópole portuguesa e por tabela da francesa. Peri, o herói, é descrito como um goitacá. Os goitacazes, extintos ao final do século XVIII por uma criminosa epidemia de varíola, eram praticamente o único povo “tapuia”, de língua do tronco macro-jê, que ficara no litoral, na altura do hoje Espírito Santo, por ali.

Entretanto, o bravo Alencar põe seu herói a falar guarani (é a língua que dá nome ao romance) sem mais aquela nem aquele, enquanto enfrenta os temíveis “Aimorés”, nome de uma marca de fósforo, de uma lata de biscoitos e de um time de futebol também legendário de São Leopoldo, onde despontavam beques (hoje zagueiros) temíveis como Toruca e Beiço mas também jogadores sofisticados como Mengálvio, do imorredouro  Santos de Pelé-Coutinho, e Marino, que fez um gol quando o imortal Yashin, o Aranha Negra, maior goleiro do mundo, era o arqueiro. Pois “Aimoré”, sinônimo de “macaco”, era o nome que os Tupis davam aos hoje conhecidos como “Botocudos”, expressão que também carrega resquícios de preconceito. Pois bem, vistos como culturalmente zerados eram todos os primevos habitantes do então futuro Brasil; porém historicamente o mico ficou com os pobres tupiniquins. Ergo, no meu dicionário, “delenda tupiniquim”, a menos que seja mencionada com respeito histórico pelo nobre povo. De resto, lembro também que tudo o que aqui se diz sobre a origem das palavras deve ser assumido como hipóteses. Plausíveis, mas hipóteses. Já sobre o uso destorcido da palavra “tupiniquim”, pelo contrário, é uma certeza.

País sério. Esta expressão descende da frase atribuída ao general De Gaulle, então presidente da França, por ocasião da chamada “Guerra da Lagosta”, pela pesca do crustáceo, conflito mais diplomático do que bélico, entre 1961 e 1963, que teria dito: “Le Brésil, ce n’est pas un pays sérieux”, “O Brasil não é um país sério”. Segundo algumas fontes, o verdadeiro autor da frase seria o então embaixador do nosso país em Paris, Carlos Alves de Souza Filho, crítico do modo soberano com que os governos de Jânio Quadros e depois de João Goulart conduziram a crise. Se esta segunda versão for a verdadeira, fica mais saborosa ainda, dita assim em francês por um diplomata brasileiro. Isto o faria um verdadeiro precursor do nosso atual chanceler, para quem ideias de fato altivas e soberanas em matéria de diplomacia brasileira devem provocar azia, indigestão e mal-estar. A expressão, resquício da mentalidade colonialista que nos assola, povoa comentários “de esquerda”, assim dita, diante das barbaridades cometidas por nossos governos desde o impeachment criminoso de Dilma Rousseff, “Em qualquer país sério do mundo…”, “Se este fosse um país sério…” segue-se a conclusão: “nada disto que está acontecendo aconteceria”.

Pergunto-me sempre: o que será “um país sério?” Um país em que ninguém ri? Um país em que tudo funciona como um relógio suíço? A propósito: será a Suíça um país sério, reconhecidamente um dos maiores buracos negros dos capitais “sujos” do mundo?. Olho para os lados: Trump, Salvini, Vox na Espanha, Le Pen na França, Viktor Orban, AfD crescendo na Alemanha, Steve Bannon e o Cardeal Raymond Burke querendo derrubar o Papa Francisco, Erdogan, Putin, Guaidó, Bashar Al-Assad, os rebeldes sírios que aspiram ser a ponta-de-lança do imperialismo norte-americano ou de Erdogan, Netanyahu, Al-Sisi… Last but not least, a expressão, de claro arrière-goüt colonialista, dilui as responsabilidades, atribuindo ao país inteiro uma condição de inconsistência, de incoerência, de falta de apetite genuinamente burguês, além de traição a seu povo, que acompanha a parte mais desossada e sem espinha de nossa “élite” (fica bem, assim em francês) econômica. Aquela que acha bonito andar de trem na Europa mas detesta corredor de ônibus em S. Paulo. Portanto, também deletei o “Se fosse num país sério…”.

Populista. Eis uma palavra que, decididamente, me provoca erisipela, brotoejas, urticárias e unha encravada. E me tira do sério. Quando eu estava crescendo politicamente, ali pelos anos 50 e começo dos 60, “populista” era uma palavra que, no Brasil, a direita usava contra a esquerda moderada e  “nacionalista” no sentido latino-americano. “Populistas” eram Getúlio (o de 54), Brizola e Jango, bem como Perón, Evita e no México Lázaro Cárdenas. Populistas eram Jacobo Árbenz, presidente da Guatemala, deposto em 1954 graças à ação dos irmãos Dulles (John Foster, secretário de Estado e Allen, diretor da recém criada CIA), e Mossadegh, na então Pérsia, hoje Irã, deposto um ano antes com a ajuda do mesmo Allen.  Traduzindo: “populistas” eram políticos anti-imperialistas que defendiam e tomavam medidas “populares”, como reforma agrária, aumento do salário mínimo (a própria ideia de salário mínimo), direitos trabalhistas, inclusive para os trabalhadores rurais, reformas de base, o voto universal.

Isto era no tempo em que políticos udenistas pregavam que o voto de um engenheiro, médico ou advogado deveria valer mais do que o de um operário; em que o Manifesto dos Coronéis, contra Getúlio, em fevereiro de 1954, pregava que a valorização do salário mínimo faria logo um “simples” trabalhador ganhar tanto quanto um “graduado”. Devo dizer que, com frequência, os comunistas e socialistas também não gostavam destes “populistas”, vistos como políticos que se interpunham entre eles e as “massas”, impedindo-as de se tornarem “revolucionárias” e amarrando-as ao aprisco de um capitalismo reformado ou reformista, tipo social-democracia.

O golpe de 64 esmagou, conjuntamente, populistas, comunistas, socialistas, acaudilhando atrás de si muitos dos auto-proclamados “liberais” no Brasil, destes que, diante de qualquer ameaça a seus privilégios de classe esqueciam seu liberalismo político e embarcavam no primeiro tanque que passasse, quando não os estivessem chamando e empurrando para as ruas, como agora se agrupam atrás das togas e parlamentares golpistas. Pois bem, depois do golpe do impeachment contra Dilma e da eleição do presidente que tem dificuldades na coordenação de sujeito, predicado e complementos em suas frases, sempre lapidares manifestações de ignorância, o termo “populismo” voltou à carga no jargão político brasileiro, reconduzido à liça tanto por jornalistas do campo conservador quanto por gente de esquerda, que o carrega triunfalmente nos ombros, como se fosse santo num andor.

A origem deste verdadeiro aggiornamento da palavra está no seu uso freqüente na mídia mainstream internacional, particularmente anglo-saxônica, germânica e francesa, mas com algumas incursões também pela Espanha, Itália, Portugal e Escandinávia. Ou seja, na Vulgata do “Pensamento Ocidental” ou do que resta dele esparso pela mídia. Esta Vulgata divide o mundo político entre uma “Elite” e o “Povo”, tratado como “Volk”, “People”, “Peuple”. “Populista” é o político que corteja diretamente este “Povo”, passando, aos olhos daquela Vulgata, por cima, pelo lado ou por baixo das “Instituições”. Consequentemente, este “Populista” pode ser tanto de direita, como Trump e seus twitters, ou Gert Wilders, ou Salvini e Le Pen, ou Orban na Hungria e Bolsonaro no Brasil, quanto de esquerda, como Tsipras e sua Syriza (agora derrotada na Grécia), La Fontaine na Alemanha, Mélenchon na França, ou ainda políticos que tentem levar os partidos socialistas e social-democratas mais para a esquerda. Para este pensamento a virtude está no Centro, ou naquilo que ele considera como “Centro-Direita”, como a União Democrata Cristã de Angela Merkel ou como “Centro Esquerda”, como a velha guarda do Partido Social Democrata alemão ou Tony Blair no Reino Unido, que introduziram as reformas neo-liberais no campo trabalhista e da seguridade social, suicidando seus partidos.

Esta autêntica bolha centrista  tem limites precisos. Tudo o que dela se afasta é “populismo”, o que cria uma maçaroca cinzenta em que direita e esquerda se confundem. Por tabela, tudo o que se afasta da Suma Teológica liberal e neo-liberal em economia, com seu catecismo de austeridade e contenção de “excessos estatais”, também é enquadrado como “populismo”. E agora esta palavra volta a navegar à solta na mídia mainstream brasileira, onde Haddad e Bolsonaro eram considerados vinhos diferentes mas da mesma cepa, e também na mídia alternativa e escribas à esquerda, onde aparece este verdadeiro oxímoro diante da tradição política brasileira: o “populista de direita”. Por estas razões rejeito, em minhas mal traçadas, o uso da palavra. Até porque isto de imitar deslavadamente os cacoetes da mídia internacional é coisa típica do pensamento tupiniquim. Em qualquer país sério… Êpa! Melhor parar por aqui…

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