Retrocessos

Perto do que acontece no Brasil, período medieval foi uma época de progresso

Nos concentremos nos obscurantismos de hoje, para os quais a Terra é plana e a falta de inteligência é esférica e abrangente

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Numa época associada a obscurantismo, foram desenvolvidos, por exemplo, os vitrais. Brasil de hoje se assemelha mais à ideia de Idade Média propagada pelo cinema, repleta de ignorância e violências

Tenho lido, visto e ouvido a insistência com que se caracteriza o comportamento dos idiotas do governo Bolsonaro, inclusive o dele, como “medieval”. É destas palavras que entraram na Vulgata contemporânea, significando “atraso”, “obscurantismo”, “trevas”, por oposição às “luzes” da “modernidade”.

Protesto!

Perto do que está acontecendo hoje no Brasil e no mundo, a Idade Média europeia – que ao todo estendeu-se do século 5 ao 15 – foi uma época de progresso, com muitas luminárias que trariam suas luzes para o obscurantismo hoje reinante.

Senão, vejamos. Com todos os seus problemas, e não foram poucos, a Idade Média foi a pátria temporal de gente como Dante, Chaucer, Rutebeuf, François Villon, gestou poemas como o Cantar de Mio Cid, a Chanson de Roland, além das bases da poesia lírica moderna, em parte baseada no Culto Mariano e no fundamentalismo religioso, mas nada intolerante, e vegetariano, dos assim chamados à sua revelia de Cátaros, no sul da França, além de ter visto nascer os maravilhosos cantares d’amor e d’amigo da nossa língua portuguesa.

A Idade Média europeia popularizou o vitral, inventado no Oriente aí pelo século 4 dC, deixando a luz invadir as catedrais e os espíritos, com o processo de urbanização crescente que elevou torres e igrejas sobre o casario, a partir dos séculos 6 e 7.

Além disto, ao contrário de muitos obscurantistas que arrotam ignorância hoje em dia, qualquer estudioso mediano da Idade Média sabia que a Terra era redonda, embora, graças a uma ilusão de ótica por falta de tecnologia adequada, muitos deles acreditassem que o Sol girava ao redor do nosso planeta e não o contrário.

A Inquisição? Certo: a prática inquisitorial vinha de antes, mas a instituição e as fogueiras ganharam força a partir do século 13 e se robusteceram na época do Renascimento, graças às disputas religiosas provocadas pela Reforma. O auge dos autos da fé se deu nos séculos 16 e 17, e os reformadores protestantes só não queimaram mais gente porque tinham menos poder e alcance do que os católicos.

Enfim, para resumir, a Idade Média leva a culpa por feitos posteriores e fake news divulgadas a seu respeito pelo cinema hollywoodiano e outras fontes. O atual obscurantismo religioso que domina até a política externa dos Estados Unidos e a nossa, brasileira, por imitação canhestra, começa com o Movimento Ultramontano, que nasceu na França, no século 19.

Ultramontano? Sim, porque este movimento glorificava o poder centralizador – e conservador, na época – do poder do Papa, que sediava em Roma, além dos Alpes, além dos montes. Ultramontano, portanto.

Este movimento adquiriu força em Portugal, na Espanha, e na Baviera, terra natal de Bento 16. Padres bávaros, dentre outros, o trouxeram ao Brasil, ao fim do século 19, começos do 20, com muita influência em São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais.

Este catolicismo conservador foi fundamental para a formação do ideário do Movimento Integralista de Plínio Salgado, que teve mais a ver com ele, com a Falange Espanhola e o Salazarismo Português do que com o Fascismo e o Nazismo, apesar de figuras como Milton Campos e Gustavo Barroso serem admiradores fervorosos destes últimos.

O Integralismo segue ativo no Brasil. Com várias casas e programas de formação política dispersas pelo país, chamadas de “Casas de Plínio Salgado” que tinha mais de carola camisa verde do que de SS e SA.

Outra força religiosa importante para a formação do obscurantismo atual é a Opus Dei, fundada em 1928 por Josemaria Escrivá de Balaguer y Barbás, que tem bastante influência no Judiciário brasileiro, particularmente em São Paulo.

Por fim há o movimento cristão conservador dos Estados Unidos. tanto católico quanto pentecostal, que se espraiou pelo Brasil desde o começo do século 20,  e controla a política externa da terra de Trump por meio do secretário de Estado, Mike Pompeo. Também é apoiado pelo “falcão” John Bolton e aportado à Europa por Steve Bannon que, com o cardeal arquirreacionário Raymond Burke, conspira contra o Papa Francisco 1.

Portanto, deixemos a Idade Média e seus vitrais iluminados em paz, e nos concentremos nos obscurantismos de hoje, para os quais a Terra é plana e a falta de inteligência é esférica e abrangente.

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