inferno astral

Manifesto em defesa de José de Alencar e Gonçalves Dias

'Vamos ler menos The New York Times, e mais José de Alencar e Gonçalves Dias', afirmou o chanceler do bolsonarismo, Ernesto Araújo, em seu discurso de posse

REPRODUÇÃO

Ideólogo do governo Bolsonaro usa José de Alencar e Gonçalves Dias para pregar a assimilação dos indígenas

Por citação anódina do nosso chanceler alucinado e alucinógeno, em que este recomendava a leitura de sua obra e a de Gonçalves Dias em lugar do New York Times, o pobre do Alencar encontrou um novo inferno astral, em que alguns dos mais açodados escribas chegaram a escrever que não se deveria recomendar a leitura de suas obras nas escolas por ter sido ele empedernido escravocrata.

Em geral, os mortos não podem se defender. Há exceções. Por exemplo, o admirável Che Guevara. Morto, na visão geral passou de guerrilheiro lunático excomungado até pelos comunistas próximos da filosofia soviética a santo de presépio, com merecimento. Mas este não é o caso de José de Alencar.

Como advogado post-mortem, assumo a sua defesa, sem deixar de reconhecer as suas contradições e os seus, caramba, erros. Afinal, errare humanum est, e quem discorde disto que me jogue a primeira pedra, ou me atire a primeira bala, nos tempos que hoje correm. Os escritores são humanos como os demais, e passíveis de erros, idas e vindas, arrependimentos, coisas politicamente incorretas, etc.

Alencar foi um escritor brilhante e um político desastrado. Para não me fiar apenas em minha apreciação, cito a do insuspeito Machado de Assis que, crítico do que considerava os “exageros” do romancista, rendeu tocante tributo à sua memória e ainda reconheceu que o escritor cearense não nascera para a política.

“Ele era grande mesmo quando exagerava”, disse Machado no elogio fúnebre de seu antecessor na trajetória do então nascente romance brasileiro. Depois, na inauguração da pedra fundamental de estátua em homenagem a Alencar, em 1897, registrou o autor de Dom Casmurro: “Nenhum escritor teve em mais alto grau a alma brasileira”; ainda: “Desde logo, pôs mãos à crônica, ao romance, à crítica e ao teatro, dando a todas estas formas do pensamento um cunho particular e desconhecido”.

Mas assinala o também grande Machado: “A política era incompatível com ele, alma solitária. A disciplina dos partidos e a natural sujeição dos homens às necessidades e interesses comuns não podiam ser aceitas a um espírito que em outra esfera desfrutava de soberania e liberdade. Primeiro em Atenas, era-lhe difícil ser segundo ou terceiro em Roma”.

Traduzindo: soberano nas artes, particularmente no romance, era difícil Alencar sujeitar seu ego às vicissitudes da política. Mormente às regras implícitas do personalismo da versão brasileira.

Alencar era uma personalidade (e conheço muitas, tanto à direita quanto à esquerda e centro e ao hoje baixo mundo bolsonarista) que pensava com o fígado. Era impulsivo e rancoroso. Por isto, esta é minha teoria, teve uma atuação política voltada ao desastre. Foi um desastroso Ministro da Justiça, no gabinete conservador de 1868, fruto de um “golpe constitucional”, talvez antecessor do de 2016, em que o Duque de Caxias exigiu a deposição do gabinete liberal para assumir o comando das forças brasileiras e aliadas no Paraguai, onde afundavam em desastre. Como deputado pelo Ceará, seu estado natal, tornou-se ferrenho político conservador, opondo-se a tudo o que o Partido Liberal propunha.

Quem sabe Freud nos ajude a entender isto. Era filho do ex-padre e senador José Martiniano Pereira de Alencar e da prima deste, Ana Josefina. Ele fora senador e conspirador liberal. Participara da conspiração que levou ao Golpe da Maioridade de 1840 e depois da Revolta Liberal de 1842, com implicações que levavam à já então quase moribunda Revolução Farroupilha no Rio Grande do Sul. Literalmente sequestrara a prima para casar-se com ela, contra a vontade dos pais desta. Tivera doze filhos, fizera questão de ser enterrado com a sotaina eclesiástica e deixara um testamento em que reconhecia a prole que tivera, acrescentando: “Em sendo a carne fraca”. Imagine se fosse forte!

Tudo isto pesava sobre o jovem e maduro Alencar, homem que admirava os ademanes burgueses de Alexandre Dumas Filho, aliás, outro bastardo. E ele o admirava na vida e no teatro. Assim, não surpreende que se tenha aferrado às políticas mais conservadoras, defendendo o establishment brasileiro contra tudo que via pô-lo em perigo, também a abolição, que foi tomando vulto não só entre liberais, mas também entre militares e positivistas.

Como diz Machado, não é por aí que Alencar deve ser olhado principalmente, sem que se esqueçam seus erros e posições problemáticas. O que se deve privilegiar é aquele “pensamento” com “um cunho particular e desconhecido” que ele deu à linguagem literária brasileira – ao lado de Gonçalves Dias, deve-se registrar, que nas polêmicas de hoje ficou injustamente esquecido.

Alencar fez um esforço titânico e bem sucedido para criar uma linguagem à brasileira para a nossa literatura. Por isto enfrentou polêmicas amargas e ácidas ao longo de sua vida. Polemizou com Gonçalves de Magalhães e com o próprio Imperador, logo de saída. Depois polemizou com escritores portugueses, como Pinheiro Chagas e José Feliciano de Castilhos, que não aceitavam que o jeito brasileiro de escrever fosse literário, defendendo que permanecêssemos presos aos moldes de Portugal. Polemizou com seu conterrâneo Franklin Távora, que escreveu um romance medíocre – O Cabeleira – para se contrapor ao romance O Sertanejo, hoje considerado um dos antecessores de Grande Sertão: Veredas. Ainda teve a famosa e amarga polêmica com Joaquim Nabuco, das mais famosas da vida brasileira, e outras, como a sobre a adaptação de seu romance O Guarani para o teatro, de que ele não gostou.

De tudo isto criou-se uma plataforma de linguagem literária de onde Machado de Assis pôde alçar um voo universal.

Alencar teve ainda o descoco de escrever uma peça abolicionista “moderada”, como se dizia então, O demônio familiar, inspirada em O Barbeiro de Sevilha, de Beaumarchais e na ópera decorrente, de Rossini, então em apresentação no Rio de Janeiro, e de chamar o escravo que é o protagonista, de Pedro. Nela, o escravo faz mil e uma estrepolias para garantir o casamento de seu dono com uma viúva rica, em detrimento do verdadeiro amor deste, uma jovem pobre. Por quê? Porque ele ambiciona ser cocheiro, e a fortuna da viúva permitiria a compra dos cavalos e do coche necessários. Bom, ele não consegue. Em compensação, consegue a liberdade, que lhe é dada como um “castigo”, um prêmio, pela “graça” de seu dono.

Este era o abolicionismo de Alencar: uma conquista da “boa consciência” dos donos, não da luta pela liberdade dos escravizados. Ocorre que ele, num gesto que podemos considerar tresloucado, dedicou a peça “à sua Majestade, a Imperatriz”,  dona Tereza Cristina, da Casa dos Bourbon. O casal imperial foi à estreia. Cada vez que o nome “Pedro” era chamado no palco, a plateia se voltava para o camarote imperial e… ria. Imperdoável. Penso que isto deve ter provocado a hostilidade do Imperador em relação a Alencar de maneira mais forte do que as críticas que este fez em relação ao poema de Gonçalves de Magalhães, A Confederação dos Tamoios, cuja publicação fora patrocinada pelo próprio D. Pedro II. Assim, não surpreende que quando Alencar se candidatou ao cargo de Senador pelo Ceará, sendo o primeiro da lista (naquele tempo os estados elegiam uma lista tríplice e o Imperador escolhia um dos seus membros), D. Pedro II escolheu outro.

Alencar teve ainda problemas com a censura. Sua peça As asas de um anjo, inspirada em A Dama das Camélias, de Dumas Filho, foi proibida pela polícia e pelo Conservatório Dramático, de que ele fazia parte e então abandonou.

Qual o problema? Alencar redimia a prostituta protagonista da peça, conseguindo para ela um casamento por amor (!). Além disto, punha em cena uma passagem em que o pai dela, bêbado, tentava seduzi-la. Foi demais!

Outro dado: em seu romance O Guarani, hoje acusado de ser “água com açúcar”, Alencar faz o novo Brasil nascer, no alto da palmeira que some no horizonte, do beijo entre uma branca, a loura e angelical Cecília, e um índio, o cavalheiresco, mas… índio, Peri. A imagem era tão forte que numa das traduções alemãs do livro (houve três, na época), ela foi suprimida, sendo substituída por um desfecho em que uma gigantesca onda da inundação do rio Paraíba {hoje do Sul} os engole antes de qualquer beijinho… Levado o enredo à ópera, por Carlos Gomes, O Guarani tornou-se um cartão de visitas internacional do Brasil, talvez o primeiro. Foi apresentada em 1996, em Nova York, com Placido Domingo (!) no papel de Peri!

E nas páginas da Wikipedia, em inglês, o romance é apresentado como uma obra “dark, sexual, gothic and lyrical”.

Tudo aquilo que o neo-moralismo bolsonariano detesta. Afinal, nem Peri veste azul nem Ceci rosa. Ambos estão quase pelados no alto da palmeira de onde fundam o Brasil.

Não deixemos que alucinados estraguem a compreensão de nossa literatura, e nosso amor por ela.