República do Absurdo

Governo Bolsonaro: atropelos e ridículos não são só cortina de fumaça

Sem negar a devida atenção às matérias econômicas, afirmações sem pé nem cabeça de Bolsonaro e sua turma, dos filhos e ministros guiados por Olavo de Carvalho, apontam para maré regressiva que também precisa ser combatida

Divulgação/Bolsonaro

Plano mais fundamental do governo Bolsonaro é atrofiar, aleijar e a amputar a inteligência da juventude brasileira

Quase ao final do filme “perfume de mulher” (versão de 1992, dirigida por Martin Brest), o personagem vivido por Al Pacino, o tenente-coronel cego Frank Slade, faz uma defesa apaixonada do caráter do jovem Charlie, papel de Chris O’Donnel, que se recusa a dedurar colegas que ofenderam o diretor da escola em que estuda. Em seu inflamado discurso, o tenente-coronel, que lutou no Vietnam, diz que viu jovens aleijados na guerra, que perderam mãos, pés, braços ou pernas. Mas que nada se compara, diz ele, à visão de um “espírito amputado”: “não há prótese”, prossegue, “para isto”. 

Lembrei-me desta passagem ao testemunhar, seguidamente, a discussão sobre se as trapalhadas, vexames e ridículos de membros do governo Bolsonaro, incluindo o presidente e seus familiares, além da pastora visionária, do chanceler aloprado e muitos outros, também o guru espiritual desbocado e sua estupidez apelidada de “filosofia”, não passariam de uma “cortina de fumaça“.

Seu objetivo seria o de distrair os opositores e o conjunto da opinião pública, para não repararem as verdadeiras barbaridades que, à sombra, são o objetivo de fundo do governo: retirada de direitos, construção de um estado policialesco, intolerância diante de “diferentes” e “divergentes” do padrão familiar hétero, amputação do Estado brasileiro enquanto vetor de desenvolvimento e de inclusão social, aprofundamento da pobreza e da desigualdade, dentre outros.

Respeitosamente, discordo de quem vê neste desfile de absurdos e neste regozijo da ignorância auto-satisfeita apenas uma “cortina de fumaça“. Dentre as afirmações sem pé nem cabeça, dos negaceias, das idas e vindas desencontradas dos anúncios e desmentidos em série, o que me chamou mais a atenção, confesso, foi a afirmação da senhora Ministra da Família, de que “a religião perdera a força quando se permitiu a entrada da teoria da evolução nas escolas”.

A afirmação pode deixar pasmado quem a ouça ou leia, mas ela não é parte de uma “cortina de fumaça”. Sem desmerecer a devida atenção que se deve dar às atrocidades econômicas e os absurdos (in)constitucionais que estão chegando em tsunamis e catadupas, aquela frase é apenas a ponta do iceberg do objetivo mais profundo do governo empossado em 1º de janeiro e daquilo que ele tem de mais perigoso para a nação brasileira.

No momento em que este projeto de governo e de regime discricionários encontrar seu Waterloo – e mais dia menos dia este dia chegará – será possível recomeçar, ainda que à custa de muito sacrifício, visualizar a reconstrução do Estado de Direito e de Bem-Estar Social (pelo menos de diminuição do Mal-Estar…). Aí entra, como garantia para os algozes da Constituição de 1988, os carrascos de Lula e das esquerdas, a garra mais adunca e penetrante que este governo quer plantar: a atrofia, o aleijar, a amputação da inteligência da nossa juventude.

É isto que pretendem com a regressão histórica que planejam implantar, como um chip irremovível, uma plataforma irremediável, nos corações e mentes dos jovens que amadurecerão para o amanhã. É contra esta maré montante da estupidez e da ignorância que temos de lutar incansavelmente – sem esquecer do presente, sem esquecer nem desmerecer o passado de lutas e conquistas que temos a obrigação de salvaguardar como patrimônio para o futuro.

Estaremos nós – democratas de todas as correntes políticas, conservadores, progressistas, esquerdistas, liberais, centristas, radicais, moderados etc., e ponhamos etc. nisto – à altura de tamanho desafio? Conseguiremos fazer desaparecer esta, agora sim, cortina de fumaça de ressentimentos, mágoas, azedumes, inimizades, contrafeitos, etc., e também ponhamos etc. nisto, que obscurece nosso caminho, podendo impedi-lo?

Este é o nosso chamado principal: ganhar de novo os passos para o futuro, impedindo que o pântano grudento dos sectarismos e ódios mútuos nos faça atolar no meio do caminho. Há propostas boas já taxiando nas pistas, prontas para decolar, que resumo no anseio pela construção desta Frente Ampla pela Democracia e pela Inteligência.

Não nos neguemos a dar este passo decisivo, e deixemos para atrás quem, por qualquer motivo, se recusar a empreende-lo.