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A Rússia e o estranho jogo da diplomacia

Intervenção aérea russa na Síria conseguiu garantir a sobrevivência do presidente Bashar al-Assad. País reafirmou-se como uma potência 'global player' e não apenas regional

Flickr/Freedom House

Com o apoio dos russos, exército sírio conseguiu o controle total de diversas regiões de seu país

Fui um dos pioneiros jogadores de mesa que propiciaram, como verdadeiras cobaias autoconsentidas, o lançamento do jogo War, da Grow, um grande sucesso no mundo desportivo entre-amigos. Aliás, Grow é um acrônimo com as iniciais dos fundadores da empresa, de quem eu e os demais jogadores éramos amigos. Passávamos horas e horas diante dos tabuleiros, jogando os dados, fazendo as invasões e as defesas, até que alguém cumprisse seu objetivo declarado nas cartas sorteadas. Por vezes os jogos duravam fins de semana inteiros, com intervalos para almoços rápidos, lautos jantares, sono reparador… Enfim, éramos jovens, jogávamos War e líamos O Capital com o mesmo afã. Dali saíram rumos divergentes: uns foram auxiliar as privatizações promovidas pelo PSDB, outros ajudaram a fundar o PT, outros se foram para outras opções. Uma das mais curiosas foi a do membro do grupo que, depois de se tornar assessor do Alberto Goldman, se aposentou e foi ser líder – cinquentão – de uma banda de jovens músicos, onde pontificava na guitarra-líder.

Antes do War, houve um jogo parecido, francês, chamado Risk. E antes do Risk, houve um outro mais complicado, chamado “Diplomacy”. Consta que ele foi inventado por um norte-americano, Allan B. Callhamer. O tabuleiro simulava o mapa da Primeira Guerra Mundial na Europa. Pelo que entendo hoje, a gente jogava sobre um tabuleiro simplificado em relação ao original. Por sorteio, cada jogador recebia a identidade de um país, a quem cabia um certo número de exércitos e de navios (a aviação não entrava no jogo). O jogo consistia em ir ocupando as casas dos outros países e impedir que as casas do seu fossem ocupadas. Isto era feito por um sistema de jogadas de ataque e defesa, onde a superioridade numérica dos atacantes ou defensores definia o resultado das jogadas. Estas eram escritas em papeis e reveladas simultaneamente ao fim de cada jogada. O mais interessante, no entanto, acontecia antes das jogadas: havia um tempo para o estabelecimento de alianças entre os jogadores. Tipo; se você vai atacar a Áustria, meu exército vizinho apoia seu ataque. Em compensação, sua armada no Mediterrâneo transporta meu outro exército que quer atacar a Tunísia no Norte da África. E por aí afora. Feitas em segredo as alianças, definiam-se as jogadas. Ninguém era obrigado a seguir o acordado, e as traições e as surpresas se sucediam. O objetivo do jogo era ir destruindo os adversários até que só restassem dois, que tudo decidiriam como num duelo ao pôr do sol, ou, na verdade, na maioria das vezes, já ao amanhecer, tamanha era a duração dos jogos.

Lembrei-me deste jogo ao contemplar a situação atual na Síria. Vamos por partes, estabelecendo a posição dos jogadores:

Estado Islâmico: Derrotado, hoje ocupa bolsões remotos. Motivo da derrota: auto-confiança exagerada, incapacidade de estabelecer alianças. Mas não desapareceu: esparramou-se, através de atos terroristas em vários continentes.

Forças rebeldes anti-Assad: derrotadas. Motivos da derrota: incapacidade de fazer sequer alianças internas entre suas forças. Além disto, confiaram demasiadamente no apoio dos EUA e de potências conexas. Foram abandonados à própria sorte, com exceção de alguns grupos menores apoiados pela Turquia. Hoje controlam apenas alguns territórios de menor importância.

Bashar al-Assad e o governo de Damasco: restabeleceu seu controle sobre mais da metade do território sírio, embora este esteja na maior parte destruído, em ruínas. Sobreviveu à guerra, graças à sua coesão interna e ao apoio do Irã e da Rússia. Sobreviverá a uma ainda virtual paz? A ver.

Curdos: dominam quase um terço da Síria, ao norte. Querem agora negociar com Damasco a constituição de uma “república federativa”, com grande autonomia para poderes locais. São a força mais progressista nesta barafunda. Tiveram apoio da Rússia e dos EUA. Enfrentam forte oposição da Turquia.

Turquia: domina um enclave em território sírio, junto a sua fronteira, para impedir o que considera uma excessiva proximidade dos curdos, tida como algo ameaçador à sua política de repressão aos movimentos internos desta etnia.

Irã: apoiou o regime de Assad e estendeu sua influencia pelo país, até a fronteira com as colinas de Golan, território sírio ocupado por Israel desde 1967.

Israel: teme mais do que tudo a influência iraniana na Síria e sua possível presença em regiões próximas de suas fronteiras. Quer promover mais animosidade dos EUA contra o Irã. Nesta altura, conta com aliados que uma década antes seriam considerados inimigos: a Arábia Saudita e os Emirados Árabes Unidos (EAU). Mas seu maior peso vem do lobby conservador judaico nos EUA em favor de Trump e dos republicanos.

Arábia Saudita e EAU: no seu afã de se contrapor ao Irã, fizeram a aposta errada: confiaram demasiadamente no poderio e no interesse dos EUA em derrubar Bashar al-Assad e hoje estão quase marginalizados em qualquer quadro que sobrevier desta estúpida guerra.

EUA: fizeram uma aposta errada, avaliando que o governo de Assad se desmancharia, como os de Ghaddafi na Líbia e de Saddam Hussein no Iraque. O maior desejo de Trump, no momento, parece ser o de sair da Síria, mas precisa negociar isto com a Rússia, em vista de garantir que esta conterá o Irã e protegerá Israel.

Rússia: estão mais ou menos a cavaleiro da situação. A intervenção de sua força aérea conseguiu garantir a sobrevivência de Assad. Não se comprometeram com pessoal em terra, salvo em um ou outro incidente, digamos, “menor”. Estão se reaproximando da Turquia, e podem negociar em vantagem com os Estados Unidos, pedindo em troca das garantias que possam oferecer quanto a Israel e a contenção do Irã algo como afrouxamento das sanções econômicas por parte dos EUA e reconhecimento da situação de fato na Crimeia e na sua fronteira com a Ucrânia, por exemplo, além de uma contenção do afã de alguns membros da OTAN junto à sua fronteira no extremo norte, países como Finlândia, Lituânia, Letônia, Estônia, ou outros mais ao sul, como Polônia et alii. Manteve sua base naval no Mediterrâneo, em território sírio. Além disto a sua presença na Síria reafirmou-a como uma potência “global player”, não apenas regional, o que pode trazer dividendos em outras regiões da geopolítica mundial, como na África, Ásia e América do Sul. Junto com Bashar al-Assad é a grande vencedora deste jogo tão complicado quanto sujo, onde vale tudo, menos lealdade.

Povo sírio: o grande perdedor de tudo. 12 milhões de refugiados, mais de 5 milhões fora do país e mais de 6 milhões dentro. Começam a retornar para o que sobrou de suas casas e terras devastadas para que Bashar al-Assad fosse deposto. Deu no que deu, e no que não deu.

Outros: o Hezbollah, do Líbano, sai um pouco reforçado pelo incremento da influência do Irã na região. Idem, os Houthis no Iêmen, apesar da enorme pressão militar e política dos sauditas e aliados.

Este é o tabuleiro. Façam suas apostas. A propósito: quando jogávamos Diplomacy, jamais conseguimos terminar uma partida. Qualquer coincidência é mera semelhança.

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