flores e frutos

Dez perguntas e comentários a partir das eleições municipais no Brasil

O Brasil vive em ciclos e surtos que se repetem. Na longa tradição resiliente do Estado brasileiro, os ciclos são de esquerda e os surtos de direita

RICARDO STUCKERT FILHO/ IL

Com todos os erros possíveis, Lula e o PT difundiram a ideia de que o principal direito é a consciência do direito a ter direitos. Difícil o conservadorismo lidar com isso

1. O dado mais alarmante destas eleições foi o alto percentual de abstenções, mais o de votos nulos e brancos. Juntando-se tudo, foi mais de um terço do eleitorado. A Reuters chegou a falar em cerca de 40%. Quem são estes absenteístas e porque se abstiveram? Não tenho dados sobre isto, mas chuto na maior certeza que entre eles o percentual de jovens deve ser alto. Qual a distribuição regional do absenteísmo? Este é o pior dado em si, e também porque certamente vai assanhar os defensores do fim da obrigatoriedade do voto, porque consideram que ela falseia a democracia.

2. Este dado (o absenteísmo) evidencia (mais uma vez) que, por incrível que pareça, o Brasil é um país “antenado” com as tendências mundiais. O absenteísmo (sobretudo de jovens) é uma tendência na Europa e nos Estados Unidos.

As manifestações dos “indignados” na Espanha, dos “Occupy” nos EUA e na Europa não se traduziram em votos. O Podemos se assentou, mas não decola na Espanha. O PSOE se debate em crise interna. Bernie Sanders despertou os jovens nos EUA, mas agora faz das tripas coração para transferir seus votos para Hillary Clinton. Na Colômbia o processo de paz foi derrotado no domingo, sobretudo, pela abstenção: 61 mil votos separaram o “não” do “sim” a ele, mas a abstenção superou os 60%.

3. Em geral, épocas de crise profunda e prolongada levam os eleitores para a direita. Veja-se o que acontece na Europa, com o Brexit, Le Pen e a provável volta de Sarkozy na França; a ascensão da extrema-direita e de um demagogo da marca de Trump nos Estados Unidos, a consolidação do governo de Shinzo Abe no Japão, de Putin (que é um cara conservador) na Rússia, a vitória de Narendra Modi na Índia, de Duterte nas Filipinas, de Sisi no Egito, Macri na Argentina etc.

Por que no Brasil seria muito diferente? A crise demorou, mas chegou. O erro do segundo governo Dilma foi o de pretender transformar a crise em virtude, e sem explicar muito pra muita gente.

4. Ah, dirão, mas a crise falimentar do segundo governo de FHC abriu o caminho para a vitória de Lula em 2002. É verdade. Mas naquele momento havia uma percepção difundida (e não se pense que as massas são ignaras) de que aquela crise era a crise de um governo e de um país.

Depois, analistas de direita quiseram vender a ideia, recentemente, de que o Brasil ia mal e o mundo ia bem. Não colou. As massas, que não são ignaras, sabem que tudo vai mal, ficam na defensiva. Se abstém? Outra pergunta a ser respondida.

Nas manifestações recentes se abstiveram. Os manifestantes eram predominantemente de classe média, contra e a favor do que se quiser: impeachment ou Dilma, golpe ou contra-golpe. As massas ficaram em casa.

5. Tenho lido com frequência o comentário de que um dos principais erros do PT no poder foi “não alfabetizar politicamente as massas”. Novamente me assalta a imagem difundida em muitas das esquerdas de que as massas são ignaras e que cabe à casta dos iluminados (de preferência pequenos-burgueses traidores de sua classe) ilustrá-las e, como se diz na vizinhança do nosso país, “acaudilha-las”.

O PT cometeu vários erros, como todos os comuns dos mortais. Mas dois grandes ressaltam à vista. O primeiro grande erro foi pensar que a mudança da paisagem social brasileira aconteceria sem despertar conflitos de índole sanguinária. A beleza da paisagem ofuscaria os inimigos. Índole sanguinária: isto de que, como li na internet, “aeroporto não é para pobre”.

Outra versão: “no shopping center lugar de pobre é no caixa ou na vigilância”. Na universidade, nem pensar. Este erro explica outro, consequente: não atentar para a importância de enfrentar os cartéis midiáticos, achando que o seu sucesso abafaria o ruído destes, os guinchos que continuamente dão em defesa da noção de que direitos são privilégios de classe.

O segundo grande erro foi – por alguns líderes – pensar que poderiam “acaudilhar” o Estado brasileiro. Estado: o real, com suas ramificações no submundo das finanças e dos financiamentos. Tipo Marcos Valério. O Estado brasileiro é muito resiliente. Tem mais de 200 anos de resiliência (contando a partir da vinda de D. João VI). Nem a ditadura militar conseguiu modificá-lo radicalmente.

Dois personagens conseguiram, em alguns momentos de suas vidas: D. Pedro II e Getulio Vargas. Lula é o terceiro. Porque o seu legado não vai desaparecer, apesar dos FHCs e Temers da vida. Mas não esqueçamos: Pedro II pagou com o exílio, Vargas com a morte. Ouvi dizer que Lula “está acabado”. Longe disto. Todo líder, para entrar para a História (no plano do mito, para ser mais preciso) deve ser perseguido. Moro que se cuide. Todos lembram de Joana D’Arc, de Tiradentes, mas não de seus algozes. Silvério dos Reis não dá nome nem para pedra de rua.

6. Porém a extrema-esquerda não conseguiu (também, como a direita) engolir o sucesso de Lula e do primeiro governo Dilma. Durante doze anos negou que houvesse alguma mudança substantiva no Brasil. Houve momentos em que ela, ou parte dela, se aliou à direita para “investigar” a “corrupção” do PT.

Não esqueço da então líder do PSOL, de camisetinha popular ombro a ombro com o terno e a gravata de ACM Neto para cima e para baixo Brasil afora. Mas agora está brotando e florescendo um PSOL renovado, com Jean Willys, Freixo e outros, mais arejados, abertos, distantes daquele ranço exclusivista que ainda vige em Luciana Genro.

Com isto não estou jogando para baixo do tapete os ventos de renovação que sopram de outros lados, com Jandira Feghali, Requião, e até – pasmem os críticos que torciam o nariz – Kátia Abreu, além de outros e outras que empunharam o bastão da dignidade em meio à caterva de pusilânimes e bandidos. Inclusive Haddad, Gleisi Hoffmann…

Cito nomes para apoiar a argumentação, não para desmerecer quem não tenha citado, até porque a lista seria longa demais para um artigo. Encerro a lista com o comovente e digno apoio de Antonio Candido a Haddad.

7. Refundar o PT. Renovar a direção. Será? Sim, seria muito bom se isto acontecesse, mas este é um processo longo e geracional. Que, por ora, está ocorrendo fora do PT. Acontece nas ruas, com os e as jovens que corajosamente enfrentam as polícias e brigadas militares pelo país afora, tendo seu primeiro banho de gás lacrimogênio e cacetadas.

Está acontecendo entre algumas líderanças do PSOL. Tomara que isto chegue ao PT. Mas se chegar, vai chegar através desta liderança inconteste que se chama Luis Inácio Lula da Silva, o estadista brasileiro da abertura do século 21, assim como Vargas foi o dos meados do 20 e Pedro II o do 19.

8. Sim, o papel da mídia tradicional é importante. Mas não explica tudo. Os Marinho podem achar que são os “capo” do Brasil. Otavinho, o Richelieu. Os Mesquita, os Founding Fathers do Brazil. Os demais nem citação merecem. Entretanto, apesar da campanha sórdida que estas e outras mídias fizeram recentemente, não se pode negar que elas sempre fizeram campanha sórdida. O que interessa é ver por que, para além da coxice crendeira, desta vez (como em 64), o golpe deu certo em derrubar o governo e pôr o PT no banco dos réus, como se fez com o PTB em 64.

9. Os juízes, promotores e policiais federais golpistas de 2016 são os coronéis de 54 e os generais de 64. Os deputados e senadores que votaram o impeachment concorrem apenas ao Oscar de coadjuvantes. Temer ainda vai ser citado na História como um inocente útil. A República (melhor seria chamar de Ducado) de Curitiba de 2016 é a República do Galeão de 54 e o que se chamava de “Sistema” a partir de 64/68.

O que evoca uma ideia muito pertinaz e pertinente de que o Brasil vive em ciclos e surtos que se repetem. Na longa tradição resiliente do Estado brasileiro, os ciclos são de esquerda e os surtos de direita. Estes são mais numerosos e constantes, aqueles, mais decisivos e permanentes.

Pedro II organizou o Estado brasileiro e sua filha, quæ sera tamen, aboliu a escravidão. Vargas, com todo o seu autoritarismo, modernizou este Estado, abriu o caminho da industrialização e sedimentou, institucionalmente, a presença dos trabalhadores no orçamento federal, nos investimentos e nas despesas correntes, além de na vida política.

10. Lula, Dilma e o PT, com todos os erros possíveis, fizeram algo mais solerte. Difundiram pela rosa dos ventos a ideia de que o principal direito é a consciência do direito a ter direitos. Esta pasta de dentes nem Temer nem PSDB nenhum, nem juiz ou promotor algum, vão conseguir por de volta dentro do tubo. Ela pode demorar a florir. Mas como já disse Geir Campos, “as flores não têm pressa, nem os frutos…”.

Quem não morrer por dentro verá.

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