vence ou não

O passado, o presente e o futuro do golpe

Avançando ou sendo barrado no Congresso, o roteiro do impeachment contra Dilma deve continuar, numa luta que certamente será de longa duração.

Ricardo Stuckert/ Instituto Lula

Lula, em ato em defesa da legalidade democrática, em Fortaleza: roteiro da luta contra o golpe ‘legal’

Como diz o ditado, às vezes a quantidade de árvores impede que a gente veja o tamanho da floresta. Está acontecendo algo parecido com o atual processo de golpe de estado em curso, disfarçado sob o nome de impeachment da presidenta Dilma.

O golpe é tão golpe que até um dos mais renitentes interessados nele, o ex–presidente Fernando Henrique Cardoso, defendeu a ideia de que, mesmo sendo Dilma inocente de qualquer acusação, deva ser impedida.

Mas dá para discernir um roteiro no golpe, mesmo que ainda confuso e com bifurcações no futuro.

O passado e as bases do golpe

No começo do século 21 o mundo viu alguns acontecimentos capitais em matéria de golpe. O primeiro foi a decisão da Suprema Corte nos Estados Unidos, por 5 a 4, determinando a suspensão do reexame da votação presidencial na Flórida, suspeita de graves irregularidades e fraude. A vitória, por um voto, elegeu Bush Filho e derrotou Al Gore.

Houve a tentativa de golpe na Venezuela. Era para ser um golpe clássico, com militares tomando o Palácio Miraflores, empossando um presidente fantoche (Pedro Carmona), e detendo, talvez expulsando, o presidente legítimo e legal, Hugo Chávez. Apesar do apoio deslavado da mídia golpista e da precipitada comemoração interna e externa, não deu certo: o povo cercou o Miraflores, e militares legalistas trouxeram o presidente de volta.

A frase de um assessor militar de Carmona foi lapidar: “presidente, estamos no poder ou cercados no palácio?”. O mico foi tremendo: a capa de Veja e outras revistas no Brasil festejava a queda do “tirano” enquanto ele estava no Palácio, reconduzido pelo povo e os militares legalistas.

Acontecimentos como estes marcaram o fim dos golpes militares no continente. Mas abriram um outro caminho: a via judicial, legalizada. O novo caminho foi exercido em Honduras e depois no Paraguai, com uma extensão parlamentar. Tudo “legal”.

No caso brasileiro, ao longo dos governos petistas formou–se uma crosta de ressentimento dentro de uma grande parcela da classe média acostumada a ver direitos como privilégios, e a se identificar com o andar de cima da sociedade, através de práticas como o subemprego doméstico e a “reserva” de certas áreas da vida social, desde elevadores nos condomínios a filas de aeroporto, shopping centers e universidades.

Esta parcela (que não é toda nem é, necessariamente, a maioria) não se acostuma com a mudança na paisagem social brasileira. Porque houve esta mudança: não mudou a estrutura, mas mudaram quantidades, e numa sociedade que continua animada pela ideia de que “pessoas” se identificam pelo que consomem, tanto quanto pelo que os outros “não consomem”.

Esta é a base social que agita as manifestações da direita, aplaude Bolsonaro e Moro, e mais recentemente vaia Aécio, Marta e Alckmin, além de afugentar Serra, que ia à manifestação mas não foi.

O presente

A tese do impeachment anda atrapalhada, mas não morreu. Dela depende a sobrevida do deputado Cunha, e também acalenta a ilusão, para muitos dos potencialmente envolvidos, de que com a vitória do golpe a Lava Jato vai parar. Porém, se uma parte do motor do golpe está no Congresso, uma parte dele não está.

Seus mentores principais de hoje são uma frente de juízes e promotores, avatares daquela classe média ressentida, que agem como os coronéis de 1954. Agem como se estivessem acima das leis, da Constituição, atropelam e negam direitos, forjam as próprias trilhas (i)legais adotando ares de total impunidade. Grampeiam, expõem, execram, a seu bel prazer.

Com isso, insuflam um comportamento – sempre apoiado pelas manchetes da mídia que nunca deixou de ser avessa a um golpe – irregular, animado pelo sentimento de impunidade: hordas pequenas ou grandes agridem pessoas que vestem vermelho, insultam adversários em restaurantes, oferecem recompensa para quem o faça, uma pediatra recusa atendimento a uma criança filha de mãe “vermelha”, pregam até a morte dos indesejáveis.

A ideia de combater a corrupção virou mesmo uma cenoura para os burros que a seguem.

De momento, no entanto, o golpe se apoia no impeachment ou na forçação de barra que é o pedido de renúncia da presidenta. E do vice. Resta o problema do que fazer com o Cunha, que se tornou o peão com vezos de rainha que ninguém mais quer no tabuleiro, mas que ninguém dos golpistas sabe o que fazer com ele.

Em suma, a narrativa, ou o enredo, se complicou e azedou. Mas está longe de morta.

O futuro

Para começo de conversa, o futuro tem dois planos.

No primeiro, mais imediato, o impeachment vence na Câmara ou não vence.

Vence. A arrogância vai se multiplicar. Os ataques aos “vermelhos” se tornarão mais contundentes. Os fascistas vão catapultar a candidatura de Bolsonaro ou de Moro. Mas atenção: há um problema no meio disto. Uma parcela do PMDB – e de outros partidos – acha que a vitória do impeachment, ainda que parcial (tem que passar no Senado e talvez no crivo do STF), vai suspender a Lava Jato. Se isto acontecer, o messiânico juiz Moro se desmoraliza “do primeiro ao quinto”, como se dizia no bom tempo. Ele vai concordar com isto? Duvido. Uma alternativa é de fato fazer dela uma investida apenas anti–PT. Vai ser difícil, sobretudo depois dos Panama Papers.

Perde. Temer fica com o abacaxi na mão, pendurado no pincel: to be or not to be. Cunha vai ter que se refugiar em alguma embaixada obscura. Ou então, o que é mais provável, tentar reabrir o processo com algum pretexto. Mas os elementos mais exaltados nas sombras podem tentar medidas mais extremas, talvez até partam para algum terrorismo, mesmo que de quintal. Mas… a parcela mais institucional do golpe (PSDB, DEM etc.) vai para o tudo ou nada no Congresso.

Aí entra em cena o plano segundo do golpe, cujo buraco é bem mais em cima. Há uma concertação ensaiada, que busca um giro de 180 graus na política externa brasileira, com reflexos internos, retornando aos tempos de alinhamento subserviente aos Estados Unidos. A base desta ideia jaz na constatação de que a crise internacional derrubou o preço das commodities, deixou a economia brasileira anêmica, carente de investimentos externos.

Por isto, a leitura otimista deste panorama leva a crer que a retomada da confiança por parte de certos investidores internacionais reanimaria a economia e levaria um governo de direita ao sucesso. O preço a pagar – ou a ganhar, em termos de favores e benesses aos condutores desta política – é a solapação das bases de avanço social dos últimos anos, a destruição dos direitos trabalhistas, o fim dos programas sociais e das políticas afirmativas mais recentes, e a entrega do pré-sal e da infra-estrutura brasileira a investidores internacionais – provavelmente com exclusão da China.

Há muita ilusão nisto. A primeira delas é a de que uma análise deste tipo possa ter sido engendrada no Brasil. Provavelmente ela foi comprada, aceita, deglutida, empurrada goela abaixo, algo assim. Isto vem de think tanks externos.

Uma outra ilusão – comum também na esquerda – é a de que isto tenha sido gerido pela Casa Branca, pelo Departamento de Estado ou até pela CIA. Os Estados Unidos se tornaram muito mais complexos do que isto. Há uma parafernália de ONGs, think tanks, agências privadas que promovem este tipo de análise, financiam movimentos brasileiros (como o Movimento Brasil Livre) como financiaram movimentos no Leste Europeu, que têm acesso – isto sim – a informações classificadas do governo norte–americano (se Snowden conseguiu vazar para um lado, imagine o que não se vaza para outros) e que se articulam de modo muito mais sutil e orgânico do que aqueles pesados Panzers da política tradicional no Big Brother.

Traduzindo: se o golpe não der certo no Congresso, ele vai continuar por outras vias. Ou seja: é melhor apertar o cinto, porque a luta, com impeachment ou sem ele, vai ser de longa duração.

Quem sobreviver, verá.