inequação

O Charlie Hebdo, o Islã, os preconceitos discriminatórios e o Estado laico

Na era dos individualismos absolutos, defender a perspectiva de que todos tenham os mesmos direitos, vai ser cada vez mais trabalhoso. A discriminação não tem limites nem fronteiras

EFE/Bilawal Arbab

Cidadãos paquistaneses em Paris em ato pelas vítimas de atentado contra jornal: temor pela escalada do preconceito

A partir do meu post sobre o massacre no Charlie Hebdo, cometido em nome de uma visão (?) preconceituosa construída a partir do Islã, e de seus igualmente trágicos desdobramentos, meu amigo e blogueiro Telmo Kiguel (do site Sul21) me pergunta:

“Pensas que pode ter sido também um final terrível entre os que são contra o Estado laico e os jornalistas que o defendiam”? “Este aspecto teria que significado no episódio”?

É uma pergunta absolutamente pertinente, e de “muitos gumes”. Vou tentar respondê-la levando em conta toda a sua complexidade.

Começo por uma observação pessoal e universal. Todos carregamos preconceitos. Trazemo-los do berço, da família, da escola, da formação profissional, de nossas preferências esportivas, políticas etc., e coloquemos etc. nisto. Como diz o dito popular, a melhor artimanha do Diabo é convencer-nos de que não existe. Aí é que Ele impera, assim com maiúscula. A maior ingenuidade que se pode cometer é acreditar que não se tem preconceito algum. Mas ter preconceitos é uma coisa. Outra coisa é outra coisa: deixar-se dominar por eles, permitindo que eles se transformem em juízos absolutos de fato é outra coisa.

Segunda observação. Preconceitos que põem em perigo o Estado laico não são privilégio de visões sectárias islamistas. Podemos revolver o passado. O que a Igreja Católica e mesmo outras profissões cristãs fizeram em nome do Cristo fariam este se revolver na cruz. O que o próprio Estado laico francês cometeu no caso Dreyfus ofende seu próprio conceito, e o que faz hoje ao proibir que estudantes islâmicas usem seus véus na escola pública não fica muito atrás. A própria ideia proposta pelo governo de Benyamin Netanyahu de declarar Israel um Estado “judaico” vai na mesma esteira.

Aqui na Alemanha movimentos aparentemente laicos como o PEGIDA – Patriotas Europeus (!) contra a Islamização do Ocidente – nega o núcleo central do conceito da laicidade do Estado, que é o da universalização dos direitos da cidadania, independentemente da crença particular de cada cidadão. Por Estado laico não se pode conceber apenas uma instituição pública que não pendura crucifixos nas salas de aula.

É necessário a este Estado dito laico reconhecer a igualdade de todos perante a lei dentro de suas diferenças. Por isto a atitude do Estado francês, proibindo o uso da burca na rua ou os véus islâmicos no espaço escolar é equivocada. No limite isto implicaria proibir freiras de vestir o hábito no espaço público; padres, a batina; harekrishnas, a toga laranja; e até exigiria que fiscais na entrada das escolas revistassem moças e rapazes para ver se não carregam crucifixos clandestinos sob as roupas.

O ataque terrorista da semana passada trouxe de volta o poderio da Al-Qaïda, que estava um tanto em segundo plano, mas o gesto mais significativo de todos neste sentido foi o de Amédy Coulibaly, gravando sua “filiação” ao Estado Islâmico, ex-ISIS. Neste gesto ele revela a adesão do trio, ou quarteto, ou seja que algarismo for, à perspectiva de construir um Estado que se baseie na discriminação agressiva dos seres humanos, dividindo-os entre aqueles que têm direito a ter direitos e aqueles que não têm, seja por serem inferiores aos outros, seja por serem considerados uma espécie de anti-humanidade.

É preciso reconhecer, no entanto, que esta estrutura de pensamento, a divisão entre ter direito a ter direitos e não tê-lo, prescinde da figura de um Deus, Alá, Javé, Zeus, Júpiter ou o que for, assim como prescinde da sua centralização num espaço coletivo de contato com o sagrado, que é o que a religião estabelece.

O que importa é sua centralização por algo – que além da religião pode ser uma pertença étnica, nacional, cultural, sexual ou qualquer outra – que se absolutiza e passa a negar ou a relegar a um plano de inferioridade quem carregue consigo outras pertenças.

Quando a extrema direita europeia nega o status de igualdade dos muçulmanos ou imigrantes de um modo geral, ela está corroendo o princípio do Estado laico de modo conceitualmente idêntico aos dos três assassinos que metralharam os jornalistas, os policiais e o gesto de um deles, depois, matando judeus no supermercado por serem judeus, nada mais.

Ela – a extrema-direita – está alimentando esta visão assassina do mundo. Da mesma forma, esta visão assassina é alimentada pela nossa extrema-direita, ao pedir, por exemplo, a volta da ditadura militar. Também não escapa desta máquina de moer assassina o gesto de Marine Le Pen ao sugerir, na esteira dos acontecimentos da semana passada, o retorno da pena de morte na França. A sugestão equivale a de uma eutanásia social e cultural.

O pior disto tudo é que daí pode emergir o sentido de uma “nova” cruzada anti-muçulmana, assim como uma das pires coisas que pode acontecer é, à luz da proposta de Netanyahu de transformar Israel num “Estado Judaico” e do reforço das atitudes anti-palestinos que seu governo vem encarnando, o engrossar do caldo antissemita que lateja ainda e sempre na Europa e no mundo.

Como vivemos na era da absolutização dos individualismos – de suas crenças narcísicas e também de suas descrenças na alteridade – quem defende a perspectiva de um Estado laico vai ter muito trabalho daqui para a frente.

O gesto impiedoso de um dos irmãos Kouachi, filmado e exposto ao mundo, dando o tiro de misericórdia (?) no policial muçulmano Ahmed, já baleado e caído no chão, sintetiza a complexidade desta problemática pergunta levantada pelo Telmo: a discriminação não tem limites nem fronteiras pois quando, para construir meu eu, eu preciso assassinar conceitualmente o outro, assassiná-lo fisicamente passa a ser um corolário em algum momento inevitável.