Simplório

Blogue do Velho Mundo

O jornalista analisa política, cultura e sociedade no cenário internacional

Simplório

Bolsonaro: as falácias de um presidente sem luz própria

Em mais um “balão de ensaio”, o mandatário diz que o Brasil desperdiça verbas em educação, e lança bases para uma campanha repressiva no setor
por Flávio Aguiarpublicado 06/03/2019 11h15, última modificação 06/03/2019 14h25
Bolsonaro/Divulgação

Problema fundamental da educação continua sendo pouca valorização e formação deficiente dos profissionais

Steve Bannon desembarcou na Europa, e o desembarque já rende dividendos. Seu investimento maior no momento se concentra no partido Vox, da extrema-direita espanhola, que conseguiu unir-se, em frente, com os dois outros partidos de direita, o Popular e o Ciudadanos, tendo em vista as eleições nacionais previstas para 28 de abril.

O jornal El País, na edição de segunda-feira (4), revela que dirigentes do Vox se reuniram com Bannon para finar seus instrumentos de luta, em particular nas redes sociais. O Partido Socialista, segundo a reportagem, expediu pouco mais de 2 milhões de mensagens na rede, no último mês. O Vox, que não tem representação no Parlamento Nacional, ultrapassou os 3 milhões de mensagens.

A reportagem, referindo-se às campanhas de Trump e Bolsonaro, analisa os principais moldes de comportamento estas mensagens. São quatro: 1. “enquadrar” uma ideia, apresentado-a como original, sua; 2. desviar a atenção, encobrindo os fatos com cortinas de fumaça; 3. atacar a credibilidade dos adversários; 4. lançar balões de ensaio, para avaliar os resultados.

A nova campanha do presidente no campo da educação, depois dos fracassos de seu ministro com as mensagens sobre cantar o hino e repetir slogans da eleição de 2018, vai nesta direção. É uma tentativa de recuperar o terreno perdido pela inabilidade do ministro. Funcionará? É o balão de ensaio.

Nesta campanha, Bolsonaro argumenta que o Brasil desperdiça verbas na educação, gasta muito mais do que a media dos países ricos, mantendo posições baixas no Programa Internacional de Avaliação de Alunos, organizado pela OCDE. Aponta que o PT inchou os gastos em educação, sem resultados. Em 2003, o Brasil aplicava 30 bilhões de reais no setor; em 2016, 130 bi.

Promete então uma Lava Jato na educação (justo no momento em que desautorizou seu ministro da Justiça, forçando a desnomeação de reconhecida autoridade em segurança para Conselho do ministério). Diz que haverá resistência no setor, sugerindo que privilegiados ficarão descontentes, falando até em greves. Enfim, um manancial de falácias.

Bolsonaro pretende transformar um problema complexo em algo simplório. Por exemplo: os melhores desempenhos do Brasil nas áreas averiguadas nos exames feitos pela OCDE se deram em 2009. Oculta (esta é uma operação fundamental na estratégia) que o desempenho dos estudantes brasileiros é muito desigual entre os diferentes setores.

Em todos os campos, os melhores resultados são obtidos por estudantes da rede federal (ciências, leitura e matemática), que se igualam aos dos países desenvolvidos. Os da rede privada vêm em segundo lugar. Os piores resultados são dois estudantes das redes estaduais e municipais, ressalvando-se que os desta última rede ainda estão no nível de ensino fundamental.

O Brasil investe em educação 6,1% do PIB, enquanto a media dos países da OCDE é de 5,6%. Sim, mas… de 2003 em diante o número de estudantes nas redes fundamental e média no país cresceu enormemente, e elas são prioritariamente responsabilidade de governos estaduais e municipais. Além disto, na OCDE a media de gasto por aluno/ano é de 8.952 US$, enquanto no Brasil a média cai para 2.985 US$/ano.*

E apontam especialistas que o problema fundamental continua sendo a pouca valorização e formação deficiente dos profissionais da educação. 

Ou seja, o que está ocorrendo é o lançamento de uma base para campanhas repressivas no setor da educação, junto com outras em outras áreas, ao invés de se atacar os verdadeiros problemas do setor. Além disto, o presidente procurar valorizar o campo do ministro que ele mesmo desacreditou (o da Justiça, pseudo-herói da Lava-Jato) e recuperar o terreno perdido pela inabilidade de um ministro que de Educação não entende nada.

*Há várias fontes a respeito. Basta pesquisar “gastos em educação com relação ao PIB”. Há dados da BBC, de O Globo, Exame etc.

 

Reconhecido

Lula envia carta pessoal ao deputado Martin Schulz, do SPD alemão

Ex-presidente do Parlamento Europeu e líder social-democrata na Alemanha afirma a Jessé de Souza ter dúvidas quanto à lisura do processo e questiona independência de Moro para julgar ex-presidente
por Flávio Aguiarpublicado 21/02/2019 11h13, última modificação 22/02/2019 16h29
arquivo pessoal
lula livre jesse souza

O professor Jessé de Souza encontra o social democrata Martin Schulz: Lula, Brasil e governo Bolsonaro na conversa

Nesta quarta-feira, 20 de fevereiro, o professor Jessé de Souza, da cadeira de Sociologia da Universidade Federal do ABC e um dos mais importantes intelectuais do país, visitou o deputado do Partido Social Democrata Martin Schulz, em seu escritório na sede do Bundestag, o Parlamento Federal da Alemanha, para entregar-lhe uma carta do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, preso político na sede da Polícia Federal de Curitiba. Martin Schulz já foi presidente do Parlamento Europeu e líder do seu partido na Alemanha, dentre outros cargos de importância na política do seu país e da Europa.

O professor Jessé foi acompanhado por Nina Glatzner, ativista em Berlim da campanha Lula Livre, pela nossa reportagem, e outros jornalistas da mídia alemã. Estiveram também presentes duas pessoas da assessoria do deputado.

Na carta o ex-presidente destaca as razões políticas da perseguição que sofre no Brasil, quando se apresentava, diz ele, “com reais condições de vencer as eleições já no primeiro turno, e depois para inviabilizar toda e qualquer participação minha no processo eleitoral que pudesse contribuir para a melhor sorte de nosso candidato, o companheiro Fernando Haddad”.

Refere-se também ao fato de que foi impedido de “gravar uma única fala de apoio ao candidato do PT, além de ser proibido de dar entrevistas à mídia. Apesar disto, destaca Lula, o PT conseguiu eleger a maior bancada na Câmara Federal, uma boa bancada no Senado, vários governadores, inclusive em coligação, e Haddad conseguiu 47 milhões de votos no segundo turno.

Lula destaca ainda a importância da “solidariedade internacional, em que estão empenhados vários companheiros de diferentes nacionalidades para nossa luta pelo Brasil e de resistência a brutal perseguição judicial” de que é vítima.

Na conversa, o deputado Schulz frisou que todo o processo contra Lula é de natureza duvidosa, e que a presunção de inocência deveria valer até a última instância de julgamento. Questionou a independência do juiz Sergio Moro – agora ministro da Justiça do governo de Bolsonaro – e declarou que percebe o perigo que corre a democracia no Brasil, com as ameaças que têm por alvo os direitos de minorias e também de membros das oposições.

Tanto ele como o professor Jessé destacaram a importância das políticas inclusivas que foram desenvolvidas no Brasil e em outros países da América Latina durante os governos de centro-esquerda que predominaram por algum tempo na região, inclusive no Brasil. O deputado assumiu o compromisso de lutar pelos direitos do ex-presidente tanto na Alemanha como também junto aos representantes no Parlamento Europeu.

Em depoimento, Schulz voltou a frisar suas dúvidas quanto à lisura do processo contra Lula, ressaltando a visita que fez ao ex-presidente na prisão em Curitiba e seu convencimento de que, no seu julgamento, prevaleceram razões de ordem política sobre aquelas de natureza jurídica.

O professor Jessé também deu um depoimento posterior, sublinhando a importância do encontro e da articulação internacional em torno da luta pelos direitos humanos e pela justiça para com o ex-presdidente.

Houve destaque também para a campanha em torno da outorga do Prêmio Nobel da Paz para Lula.

Aqui, a íntegra da carta de Lula:

carta lula schulz

nova ótica

A Berlinale 2019, o Brasil e o ‘marxismo cultural’

Brasil está presente no festival com 12 filmes, que abordam temas detestáveis pelo governo, como direitos humanos, meio ambiente e temáticas LGBTs. Nada que agrade a “famiglia” Bolsonaro
por Flávio Aguiarpublicado 13/02/2019 13h48, última modificação 13/02/2019 16h09
KARSTEN THIEL
Berlinale 2019

Brasil costuma ter presença marcante no Berlinale, que integra o chamado ‘Trio do Ouro’ do cinema europeu

Li sem surpresa a notícia de que o diretor-presidente da Petrobras anunciou, seguindo pedido do presidente Jair Bolsonaro, a suspensão do financiamento de cinema e teatro pela empresa, ela que é (ou era) a maior fomentadora de cultura no país. Compreende-se a medida. Dou como exemplo o que está acontecendo aqui na Berlinale, o Festival Internacional de Cinema de Berlim, na sua 69ª edição.

O Brasil costuma ter presença marcante no Festival, que integra o chamado “Trio do Ouro” do cinema europeu, junto com Cannes e Veneza. Dois filmes brasileiros já ganharam o Urso de Ouro, prêmio máximo da Berlinale, para o melhor filme: Central do Brasil, em 1999, e Tropa de Elite 1, em 2010. Filmes brasileiros ganharam o primeiro prêmio em outras modalidades, ou foram destacados com segundos e terceiros lugares: prêmio de votação do público, o Teddy (Ursinho) para filme de temática LGBTI, prêmio da Anistia Internacional, e por aí vai.

Desta vez o Brasil está presente com 12 filmes, entre produções próprias e co-produções com outros países, como França, Alemanha, Cuba, além de alguns mais. São 11 longas e um curta.

Obedecendo à classificação temática e estética que prevalece no governo de Bolsonaro, é tudo “marxismo cultural”, ou seja, lixo. São filmes que, seguindo a forte tradição do cinema brasileiro, abordam temas “detestáveis”, como direitos humanos, meio ambiente, “ideologia de gênero”, temáticas LGBTI, movimento estudantil, situação dos trabalhadores no capitalismo neoliberal, a dura vida dos peões de rodeio, tem até filme sobre guerrilheiro assassinado pela repressão durante a ditadura militar! É o fim da picada!

Como se isso não bastasse, há os protestos durante as sessões: a gente ouve “Lula Livre”, “Marielle presente”, “Anderson presente”, condenações à Lava Jato, protestos perante a passividade do STF, condenações à repressão contra manifestações de estudantes e outras, louvores ao MST etc..

Já não se ouve “Fora Temer!”, porque ele já saiu, mas vez por outra a palavra de ordem aparece nas imagens, bem como o “Volta Dilma”. Um horror, para quem acredita em conspiração do “marxismo cultural” e do “globalismo”, que veio substituir a conspiração “comuno-judaico-maçônica” dos anos 30 do século passado.

Nada, absolutamente nada que agrade Bolsonaro e famiglia, Damares, Araújo, Vélez, Salles, Heleno, Moro ou Onyx “Liquidificador” Lorenzoni. Nem mesmo (o ano de) 64 escapa dos ataques: não se fala em “movimento” não. É golpe mesmo, e ditadura. 

A coisa é tão grave que a Embaixada do Brasil em Berlim cancelou, sem qualquer explicação, a tradicional recepção que oferecia a cineastas, atores, atrizes, produtores, jornalistas brasileiros e locais, interessados no nosso país, sem maiores nem menores explicações.

Bom, mas deve-se registrar que toda a Berlinale é puro “marxismo cultural” na veia, segundo esta ótica. São 404 filmes neste ano, exibidos durante os dez dias do Festival, dispersos pela cidade inteira. Não dá pra assistir tudo, mas como as sinopses estão disponíveis, pode-se ver que não há um único que defenda o salvacionismo da civilização cristã-ocidental pregado por Trump, Orban, Salvini et alii e seguido à risca pela “nova” diplomacia brasileira.

Dentre as inúmeras opções, hoje destaco dois documentários excepcionais na forma e no conteúdo, cada um dentro do seu estilo.

O primeiro é Espero tua (re)volta, dirigido por Eliza Capai, que faz o levantamento das manifestações estudantis em São Paulo quando da tentativa de reestrutruração do sistema escolar do estado pelo governo Alckmin. Com uma linguagem extremamente inovadora, entre vaivéns no tempo e no espaço, o filme historia o processo que levou à ocupação de 200 escolas no estado, do Centro Paula Souza e da Assembleia Legislativa pelos estudantes, bem como a repressão violenta pela polícia e pelas autoridades.

Um golaço cinematográfico. Estreou no auditório da Casa das Culturas do Mundo, que abriga 1.250 assentos e estava completamente lotado. O filme e a equipe presente foram aplaudidos de pé, ao final, numa consagração ímpar perante o exigente público que comparece às sessões.

O outro é Estou Me Guardando Para Quando o Carnaval Chegar, de Marcelo Gomes, sobre a cidade de Toritama, no Agreste Pernambucano. Numa linguagem muito delicada, o documentário mistura uma aura de memória do diretor, que nasceu na região, com a observação do dia-a-dia atual na cidade, que se transformou na “capital do jeans” no Brasil, num processo de 20 anos.

Neste vaivém temporal, o diretor explora as condições de trabalho reviradas pela introdução das práticas neoliberais na vida dos trabalhadores. Estes e estas almejam ter seu próprio negócio e, para tanto, se esfalfam num cotidiano absolutamente estafante.

O ponto máximo desta estafa é demonstrado por uma das senhoras costureiras, dona de seu negócio (no jargão local chama-se “fração”), que diz levantar-se às seis da manhã para trabalhar; ao meio dia interrompe o trabalho para o almoço. Às 13h, volta ao trabalho e vai até as 6 da tarde, quando volta para casa e faz o jantar. Retorna ao trabalho até as 10 da noite, quando vai dormir direto.

Esta rotina segue por seis dias da semana. Domingo não é dia de folga, é dia de ir à feira vender a produção excedente a viajantes e turistas que ali vêm. O filme tem um autêntico “corifeu”, o Leo, que define o seu fio narrativo com sua verve de filósofo do sertão.

No debate, o diretor Marcelo Gomes deu uma definição magistral do que acontece nestas circunstâncias: ao tornar-se “autônomo, mas aprisionado pela ideologia do mercado, o trabalhador  torna-se “o escravo de si mesmo”, numa inversão dolorosa da conhecida “dialética do senhor e do escravo”, de Hegel. Amo e escravo se confundem num único corpo que aliena completamente a percepção do seu tempo de vida, em que o tempo do descanso torna-se apenas o intervalo entre os momentos de trabalho e alienação.

Como se vê por estes dois exemplo (outros serão comentados oportunamente), nada há que possa agradar aos que se pretendem os novos donos do tempo brasileiro. 

Republiqueta bananosa

Mourão é uma bomba e, cedo ou tarde, vai explodir

Há muito tempo que, no Brasil, a profissão de vice tornou-se perigosa por fazer contraponto aos “titulares”
por Flávio Aguiarpublicado 08/02/2019 12h57, última modificação 08/02/2019 13h17
Antonio Cruz/EBC
Vice bomba Mourão

Mourão vem partindo para a ofensiva, desautorizando políticas e declarações da ala mais aloprada do governo Bolsonaro. Se explodir, como bomba que é, vai ser ruim, mas o que pode ser pior do que o que está aí?

Observar as coisas de longe tem uma vantagem: vez por outra a gente consegue se desapaixonar das próprias opiniões e de sua medida com a pátria de origem, e ver as coisas de modo mais distanciado, inclusive no tempo. Nem de longe estou desprezando quem está no fogo da trincheira próxima daquela do inimigo em frente. Pelo contrário, estas observações que se seguem pretendem ser uma contribuição para a sua munição. Mas a de calibre grosso, diferente da do tiroteio do dia a dia.

O general Mourão transformou-se numa bomba – e prestes a explodir – dentro do governo do Jair e de sua famiglia e que inclui muita gente, não apenas os parentes de sangue. A máfia, melhor definindo, convive com “primos” distantes, como Steve Bannon, e próximos, como Sergio Moro, Deltan Dallagnol e o PSDB, que assinou mais uma vez seu epitáfio ao votar para a eleição de Davi Alcolumbre para a Presidência do Senado e assim levar o ungido Flávio Bolsonaro à mesa diretora, levando esta ainda mais pra perto de um imbróglio com milícias assassinas do Rio de Janeiro.

Não tenho a menor simpatia pelo general Mourão. Estou tentando entender o seu papel histórico. E faz muito tempo o papel histórico dos “vices” vem sendo o de fazer um contraponto aos “titulares”. Ser vice tornou-se uma profissão perigosa – para quem é titular. Senão, vejamos.

No Império não havia vices. Mesmo assim, como Regente, a Princesa Isabel assinou a Lei Áurea, terminando a escravidão, sem indenizar os proprietários de escravos. Isto afastou-os do Império, e este caiu. 

Floriano Peixoto foi vice do Marechal Deodoro. Renunciando este, assumiu a Presidência e instituiu um governo extremamente repressivo. Tornou-se o “Marechal de Ferro”.

Na República Velha predominou o compadrio entre Minas Gerais e São Paulo. Rompido este, Getúlio subiu, para o mais longo mandato da República Brasileira, só superado pelo de Dom Pedro II, no Império.

Quando voltou ao poder, Getúlio teve como vice, Café Filho, do Rio Grande do Norte, que o traiu. Curiosamente, Café Filho, devido a estas regiões pantanosas da então política nordestina, tinha ligações pela esquerda, até com o Partidão. Tornou-se um vice de direita, traiu Getúlio e sua memória e foi triste participante da tentativa de impedir a posse de Juscelino, no ano seguinte ao do suicídio de Vargas.

A seguir, Jânio foi eleito. Seu vice era Jango, dileto filhote político de Getúlio. Naquela época a eleição do presidente e a do vice eram separadas na cédula. Jânio era candidato pela UDN. Jango pelo PTB. Mas havia quem defendesse a chapa Jan-Jan, assim chamada, inclusive meu pai, que votou nela. Quando Jânio renunciou, embaído pela ilusão de que o povo o reconduziria ao poder, Jango assumiu, vindo da China, onde estava.

Como não tinha vice, seu sucessor era Rainieri Mazzili, presidente da Câmara de Deputados e do Congresso, que foi votado como presidente porque Jango, em meio a um golpe militar, “abandonara a capital sem licença do Legislativo (!)”.

Deu no que deu: Castelo Branco na cabeça, 21 anos de ditadura militar.

No meio desta, houve a proclamação ao, entre outros, do Ato 5. Único voto contra: Pedro Aleixo, vice de Costa e Silva. Quando este caiu doente, foi preciso impedi-lo de assumir a Presidência. Assumiu uma junta militar.

Depois, anos mais tarde, assumiu o primeiro presidente eleito por voto direto depois do golpe, Fernando Collor. Seu vice, Itamar Franco, assumiu a presidência quando o titular sofreu o impeachment.

Antes dele, houve Tancredo, que caiu doente na véspera de sua posse e veio a falecer dias depois, levando seu vice, José Sarney, a tornar-se presidente.

Para completar este roteiro improvisado, Temer deu o golpe em Dilma.

Ou seja, vice é fogo.

Agora, Mourão parte para a ofensiva, desautorizando políticas e declarações da ala mais aloprada do governo de Bolsonaro, isto de Embaixada em Jerusalém, políticas evangélicas, beija-mão de Bannon, Bolton e Trump.

Isto vai levar a um confronto. Se tal acontecer, Bolsonaro e suas milícias religiosas, junto a outras, não são páreos para Mourão e a caserna que o ampara, mesmo que esta se manifeste, ainda, sob o pijama dos generais da reserva, na maioria.

Enfim, vamos ver o que vai acontecer. Boa coisa não será. Mas não seria pior do que o que aí está.

Se Mourão avançar, tudo vai ruir como um castelo de cartas: os Bolsos, Moro – este juiz de segunda mão e aprendiz inepto de ministro –, até o Guedes, um Roberto Campos diminuído.

Aqui na Europa reina o desânimo em relação ao Brasil. E da esquerda à direita. Mas se isto vai se traduzir em solidariedade com a democracia brasileira, é outra história. Porque em todos os quadrantes ideológicos, com poucas exceções, reina uma pílula sedativa: o Brasil voltou ao casulo de onde não deveria nunca ter saído, aquele reservado às republiquetas bananosas.

 

conjuntura latina

Algumas coordenadas na guerra na Venezuela

Quase nunca a política externa dos Estados Unidos favoreceu a democracia em algum país em desenvolvimento. E o estado de guerra corrói valores éticos, pois se chega a uma situação de “tudo ou nada”
por Flávio Aguiarpublicado 29/01/2019 12h14, última modificação 29/01/2019 12h41
Arquivo EBC
Venezuela instabilidade

No entanto, na prática, o que se desenha na Venezuela é um golpe de estado para depor o governo de Maduro

Sem dúvida trata-se de uma guerra, e uma guerra de ocupação. Os Estados Unidos querem ocupar as reservas petrolíferas da Venezuela em benefício próprio e das multinacionais com que interagem. Não se trata de questões de “democracia”, “direitos humanos” ou outras fantasmagorias (neste contexto) que se erguem para os incautos e basbaques como fake values, “espantalhos de valores”. Rarissimamente a política externa dos Estados Unidos favoreceu a democracia onde quer que fosse no Terceiro Mundo.

Na Europa pós-Segunda Guerra favoreceram a democracia para conter os soviéticos na Guerra Fria. O cortejo de sangrentos golpes de Estado que os Estados Unidos apoiaram ou patrocinaram pelo mundo é espantoso, bem como as guerras estúpidas que promoveram, antigas e atuais.

A América Latina foi palco privilegiado destas ações nefastas dos Estados Unidos, mas elas se estenderam também pela África, Ásia e Oceania, onde quase sempre apoiaram, quando viam como necessário, governos despóticos e opressores, derrubando estadistas democraticamente eleitos. Mesmo quando combateram ditadores, como nos casos do ex-aliado Saddam Hussein e de Muammar Gaddafi, os Estados Unidos meteram os pés pelas mãos e terminaram agindo no sentido de destruir os países que “salvavam para a democracia”.

É emblemática a resposta de Aloizio Mercadante à patética pergunta sobre “por que não há golpes de Estado nos Estados Unidos?” num programa da TV brasileira: “É porque lá não há Embaixada norte-americana”.

Na Venezuela não seria, não é e não será diferente. Trata-se de apoiar um golpe de Estado para depor Nicolás Maduro e entronizar um títere que lhes seja favorável, seja ele Juan Guaidó ou outro qualquer.

Mas deve-se considerar que toda a guerra é uma coisa muito feia, mesmo as de libertação. O estado de guerra corrói valores éticos, pois se chega a uma situação de “tudo ou nada”. Para o nosso lado, tudo; para o deles, nada.

Olhando-se a crise venezuelana, vê-se uma situação de todo complexa. Comecemos pelo herdeiro de Hugo Chávez, o governo de Maduro. Herdou uma situação precária. O bolivarianismo de Chávez promoveu os imensos cordões de pobreza e as populações indígenas e criollas do país a uma situação humanitária melhor. Navegando nos bons preços do petróleo, então vigentes, não promoveu uma reestruturação econômica do país, diversificando a produção e a gestão. Entre outras coisas, a Venezuela permaneceu prisioneira das exportações de petróleo, cujo principal freguês (mais de 40%) são… os Estados Unidos.

Com a crise de 2007/2008 e a desvalorização do preço do petróleo, o país afundou na inflação e na desgraça. Inegavelmente ainda com índices fortes de popularidade junto às classes mais pobres, ainda que desvalidas, num país completamente dividido, o governo de Maduro vem se mantendo graças a um acordo com os dirigentes do estamento militar em torno da PDVSA, a companhia estatal petrolífera – agora duramente atingida por sanções econômicas dos Estados Unidos que estão congelando as reservas da empresa no seu sistema financeiro.

Em apoio de Maduro estão Rússia, China e Turquia que não são, propriamente, cartões de visita de uma perspectiva democrática. Cuba é um caso à parte, bem como a Nicarágua, países que também têm problemas com a democracia, mas não devem ser confundidos com aqueles três. Já o Uruguai, Bolívia e México externam vozes sensatas pedindo negociações, enquanto se recusam a reconhecer Guaidó no seu gesto algo monárquico de se autoproclamar “presidente”. Outra voz sensata a pedir negociações para evitar um banho de sangue é a do Papa.

Em todo caso, até o momento, os Estados Unidos não conseguiram seduzir a maioria dos membros da OEA nem do Conselho de Segurança da ONU em favor de sua aventura que pode rapidamente passar de uma “guerra híbrida” a uma invasão militar ou patrocínio de um golpe de Estado. As tiradas de Guaidó prometendo “anistia” a militares que se rebelem contra Maduro e a este mesmo, caso renuncie, vão nesta direção do aventureirismo norte-americano.

Olhemos agora Guaidó. Ele é o líder do movimento/partido chamado de Voluntad Popular, um político jovem, com popularidade junto às classes médias.

O programa de seu partido tem formulações confusas e híbridas. Auto declara-se de “centro-esquerda”, é filiado à Internacional Socialista e define-se como partidário da “economia social de mercado”, um programa nascido na Alemanha em que se misturam práticas capitalistas e liberais com valores cristãos. Seria algo próximo da União Democrata Cristã, da chanceler Angela Merkel, não fossem as características peculiares da situação venezuelana, que empurraram o ex-líder de movimentos estudantis para a liderança de um golpe de Estado com o apoio daquilo que no mundo de hoje há de pior em matéria de geopolítica, inclusive a regional da América Latina.

A seu lado estão Trump, e sua entourage composta por John Bolton e Mario Rubio, dentre outros ases do imperialismo brucutu instalado em Washington e na Flórida, além de Bolsonaro e seu chanceler fundamentalista Ernesto Araújo, os governantes da Argentina, Colômbia, Peru, Chile e outros ases da direita na região, além de Netanyahu, de Israel e da direção da OEA. O Canadá vai na esteira de Washington. A cúpula da União Europeia e alguns de seus países líderes, como Alemanha e França (o Reino Unido, por ora, está em algum ‘não lugar’) estão tentando formular uma “terceira via” que parece mais uma mera extensão da política de Washington: deram um prazo para que Maduro chame novas eleições; caso contrário, reconhecerão Guaidó como presidente.

Diante deste quadro complexo e também confuso, pode-se vislumbrar as seguintes alternativas:

1. As piores alternativas são as de um golpe militar depondo Maduro, ou de uma vitória institucional de Guaidó. A Venezuela ingressará no clube onde já estão países como Brasil, Colômbia, Chile etc., de meros quintais fantoches dos Estados Unidos. Também não se pode descartar como dentre as piores hipóteses igualmente complicadas como uma guerra civil ou invasões militares, em que o país e a América do Sul se tornarão palco sangrento da “nova Guerra Fria. As promessas desenvolvimentistas de Guaidó se esvaziam diante da truculência previsível de seu patrocinador mais importante, Trump.

2. Embora uma solução mais equilibrada da crise passe pelo menos de momento pela permanência de Maduro na presidência, outra hipótese complicada é a simples perpetuação do atual status quo. A divisão do país permaneceria extrema, e com ela o caldo de cultura que favorece a intervenção norte-americana e de seus bate-paus no continente.

3. Algum tipo de solução negociada terá de se impor, para instalar um tipo de equilíbrio, mesmo que precário. A melhor hipótese, neste caso, é a de uma negociação mediada por país da região (México, Uruguai, Bolívia, dentre outros), até mesmo com a participação da diplomacia do Vaticano (aquela ligada a Francisco, não a da Cúria) e que tenha o beneplácito de Rússia e China, já que estão encravados na questão e poderão ajudar a conter os ímpetos mais belicosos de Trump & Cia.

4. Tudo seria bem mais fácil, se o Brasil pudesse manter sua tradicional posição em favor de negociações e da via diplomática. Mas isto, de momento, é carta fora do baralho. Bom, de qualquer modo, no plano internacional, tirando o alinhamento com a extrema-direita do Partido Republicano, a política externa brasileira é carta fora de qualquer baralho.

 

sujeira

Bolsonaro: o Laranjão, as laranjas, os laranjinhas, as laranjas azedas e a laranjada

Nacional e internacionalmente, o novo governo, depois de pouco mais de 20 dias de sua “gestão” – e juntamente com a família do presidente –, transformou-se num imenso laranjal
por Flávio Aguiarpublicado 23/01/2019 14h38
Alan Santos/PR
Bolsonaro em Davos

Triste e bufo espetáculo de Davos confirmou que esta tragicomédia a que fomos introduzidos tem como protagonista o Laranjão

Eu pensei que a fruta-prima do governo Bolsonaro seria a goiaba, devido tanto à árvore em que Jesus foi visto por eminente prócer do ministério, quanto às dezenas de milhares de goiabas (bem, havia bananas também) que votaram nele para impedir a volta do PT e “limpar o país da corrupção”.

Mas não. Logo os (assim, no masculino) laranjas tomaram o proscênio deste teatro obsceno.

O triste e bufo espetáculo de Davos confirmou que esta tragicomédia a que fomos introduzidos tem como protagonista o Laranjão.

Trata-se de um presidente que não sabe onde está, não sabe por que fala, nem para quem fala, que toma o nome de Deus em vão, que cita fake-dados insustentáveis (“o Brasil tem a maior área florestal do mundo”),

Que abusa da boa-vontade histórica (seu ministério é “o primeiro da nossa História que é tecnicamente competente” – pobre do Barão do Rio Branco, pra ficar só no caso do Itamaraty…), que não há ideologia em seu governo….

Eu poderia continuar citando as barbaridades, mas chega: basta ler os já enunciados comentários em outros artigos. Importa provar: o nosso presidente não tem competência para nos apresentar ao mundo, nem mesmo para se apresentar ao mundo. Foi uma decepção generalizada, mesmo pra quem é partidário da direita e do neo-líbero-direitismo que cresce no mundo.

Um Laranja, posto lá para engambelar eleitor.

Bom, mas uma das chaves do seu fracasso é que o mundo  inteiro está sabendo das dificuldades por que ele passa no Brasil, com sua conturbada família no epicentro de escândalos financeiros complicados e também juntando denúncias escabrosas sobre sua possível participação em articulações do crime organizado. Esses laranjas-goiabas não sabem como o caso Mariellle repercutiu no mundo inteiro.

São néscios, idiotas que se acostumaram com a sensação de impunidade que uma educação numa família autocrática lhes deu.

E aí vem a turma dos laranjinhas, pequenos, mas não menos danosos: o ex-chofer, a ex-isto, o ex-aquilo, empregados nos escritórios da famíglia e que, ao que tudo indica, faziam depósitos para lá e para cá, recebiam outros indevidos etc. Pequenos ratos e ratazanas, que agora se converteram um pulgas na camisola dos laranjas e do Laranjão.

Bem, se eu fosse o tal de ex-motorista, desaparecia mesmo. Apontado como o PC Farias deste esquema, é capaz de ter o seu fim.

Este desfile de laranjas levou às laranjas azedas do espetáculo: acusados de crimes horríveis rondam a periferia da famiglia. E o mundo inteiro sabe. Também por isto o Laranjão não teve sucesso em Davos. Os silêncios foram tão eloquentes quanto as vagas afirmações que disse. Nada falou sobre o que todo mundo sabe estar escondido em seu armário.

Aliás, o ex-juiz Moro também padeceu desta “silencite” aguda. Ou seria um “silêncio obsequioso”?

Todos os laranjeiros primam por uma fé cristã de primeira, “Deus acima de tudo” (o Laranjão não consegue perceber o ridículo de dizer isto num fórum daqueles). O próprio Guedes, louvado por seu neo-liberalismo, também não está sendo mais feliz: fala de vagas privatizações, reformas e mais reformas, mas de concreto até agora nada apresentou.

Em suma, o governo de Bolsonaro transformou-se, nacional e internacionalmente, num imenso laranjal. Além dos protagonistas, há 55 milhões de candidatos ao Oscar de coadjuvantes desta comédia macabra, dos quais, avalio, uns 35 milhões são meros goiabas. Os outros, são de fato viúvos da ditadura e canalhas mesmo, gente que acha, convictamente, que é melhor do que os outros e quer manter o mantra de seus privilégios.

Tamanho é o descalabro, que um jornalista equilibrado como Luis Nassif, que admiro, estima que o governo do Laranjão vai acabar logo.

Tenho minhas dúvidas. Porque se ele cair antes de dois anos, pela regra constitucional teria de haver nova eleição. Ninguém que administre este pomar de laranjeiras e goiabeiras em que o governo brasileiro se transformou, quer isto.

Porque o PT ou as esquerdas de um modo geral perigam voltar.

Os militares não querem. Moro e a República de Curitiba não querem. O Congresso direitoso não quer. Mike Pompeo, John Bolton, Steve Banner e Olavo de Carvalho, além do Instituto Millenium, não querem (Trump está ocupado com outras coisas). Matteo Salvini não quer. Victor Orban não quer.

Ou seja, tudo, de momento, pode acabar em laranjada.

Ah…. Bom tempo em que as coisas acabavam em pizza!

 

inferno astral

Manifesto em defesa de José de Alencar e Gonçalves Dias

“Vamos ler menos The New York Times, e mais José de Alencar e Gonçalves Dias”, afirmou o chanceler do bolsonarismo, Ernesto Araújo, em seu discurso de posse
por Flávio Aguiarpublicado 19/01/2019 16h37, última modificação 19/01/2019 16h41
REPRODUÇÃO
José de Alencar e Gonçalves Dias

Ideólogo do governo Bolsonaro usa José de Alencar e Gonçalves Dias para pregar a assimilação dos indígenas

Por citação anódina do nosso chanceler alucinado e alucinógeno, em que este recomendava a leitura de sua obra e a de Gonçalves Dias em lugar do New York Times, o pobre do Alencar encontrou um novo inferno astral, em que alguns dos mais açodados escribas chegaram a escrever que não se deveria recomendar a leitura de suas obras nas escolas por ter sido ele empedernido escravocrata.

Em geral, os mortos não podem se defender. Há exceções. Por exemplo, o admirável Che Guevara. Morto, na visão geral passou de guerrilheiro lunático excomungado até pelos comunistas próximos da filosofia soviética a santo de presépio, com merecimento. Mas este não é o caso de José de Alencar.

Como advogado post-mortem, assumo a sua defesa, sem deixar de reconhecer as suas contradições e os seus, caramba, erros. Afinal, errare humanum est, e quem discorde disto que me jogue a primeira pedra, ou me atire a primeira bala, nos tempos que hoje correm. Os escritores são humanos como os demais, e passíveis de erros, idas e vindas, arrependimentos, coisas politicamente incorretas, etc.

Alencar foi um escritor brilhante e um político desastrado. Para não me fiar apenas em minha apreciação, cito a do insuspeito Machado de Assis que, crítico do que considerava os “exageros” do romancista, rendeu tocante tributo à sua memória e ainda reconheceu que o escritor cearense não nascera para a política.

“Ele era grande mesmo quando exagerava”, disse Machado no elogio fúnebre de seu antecessor na trajetória do então nascente romance brasileiro. Depois, na inauguração da pedra fundamental de estátua em homenagem a Alencar, em 1897, registrou o autor de Dom Casmurro: “Nenhum escritor teve em mais alto grau a alma brasileira”; ainda: “Desde logo, pôs mãos à crônica, ao romance, à crítica e ao teatro, dando a todas estas formas do pensamento um cunho particular e desconhecido”.

Mas assinala o também grande Machado: “A política era incompatível com ele, alma solitária. A disciplina dos partidos e a natural sujeição dos homens às necessidades e interesses comuns não podiam ser aceitas a um espírito que em outra esfera desfrutava de soberania e liberdade. Primeiro em Atenas, era-lhe difícil ser segundo ou terceiro em Roma”.

Traduzindo: soberano nas artes, particularmente no romance, era difícil Alencar sujeitar seu ego às vicissitudes da política. Mormente às regras implícitas do personalismo da versão brasileira.

Alencar era uma personalidade (e conheço muitas, tanto à direita quanto à esquerda e centro e ao hoje baixo mundo bolsonarista) que pensava com o fígado. Era impulsivo e rancoroso. Por isto, esta é minha teoria, teve uma atuação política voltada ao desastre. Foi um desastroso Ministro da Justiça, no gabinete conservador de 1868, fruto de um “golpe constitucional”, talvez antecessor do de 2016, em que o Duque de Caxias exigiu a deposição do gabinete liberal para assumir o comando das forças brasileiras e aliadas no Paraguai, onde afundavam em desastre. Como deputado pelo Ceará, seu estado natal, tornou-se ferrenho político conservador, opondo-se a tudo o que o Partido Liberal propunha.

Quem sabe Freud nos ajude a entender isto. Era filho do ex-padre e senador José Martiniano Pereira de Alencar e da prima deste, Ana Josefina. Ele fora senador e conspirador liberal. Participara da conspiração que levou ao Golpe da Maioridade de 1840 e depois da Revolta Liberal de 1842, com implicações que levavam à já então quase moribunda Revolução Farroupilha no Rio Grande do Sul. Literalmente sequestrara a prima para casar-se com ela, contra a vontade dos pais desta. Tivera doze filhos, fizera questão de ser enterrado com a sotaina eclesiástica e deixara um testamento em que reconhecia a prole que tivera, acrescentando: “Em sendo a carne fraca”. Imagine se fosse forte!

Tudo isto pesava sobre o jovem e maduro Alencar, homem que admirava os ademanes burgueses de Alexandre Dumas Filho, aliás, outro bastardo. E ele o admirava na vida e no teatro. Assim, não surpreende que se tenha aferrado às políticas mais conservadoras, defendendo o establishment brasileiro contra tudo que via pô-lo em perigo, também a abolição, que foi tomando vulto não só entre liberais, mas também entre militares e positivistas.

Como diz Machado, não é por aí que Alencar deve ser olhado principalmente, sem que se esqueçam seus erros e posições problemáticas. O que se deve privilegiar é aquele “pensamento” com “um cunho particular e desconhecido” que ele deu à linguagem literária brasileira – ao lado de Gonçalves Dias, deve-se registrar, que nas polêmicas de hoje ficou injustamente esquecido.

Alencar fez um esforço titânico e bem sucedido para criar uma linguagem à brasileira para a nossa literatura. Por isto enfrentou polêmicas amargas e ácidas ao longo de sua vida. Polemizou com Gonçalves de Magalhães e com o próprio Imperador, logo de saída. Depois polemizou com escritores portugueses, como Pinheiro Chagas e José Feliciano de Castilhos, que não aceitavam que o jeito brasileiro de escrever fosse literário, defendendo que permanecêssemos presos aos moldes de Portugal. Polemizou com seu conterrâneo Franklin Távora, que escreveu um romance medíocre – O Cabeleira – para se contrapor ao romance O Sertanejo, hoje considerado um dos antecessores de Grande Sertão: Veredas. Ainda teve a famosa e amarga polêmica com Joaquim Nabuco, das mais famosas da vida brasileira, e outras, como a sobre a adaptação de seu romance O Guarani para o teatro, de que ele não gostou.

De tudo isto criou-se uma plataforma de linguagem literária de onde Machado de Assis pôde alçar um voo universal.

Alencar teve ainda o descoco de escrever uma peça abolicionista “moderada”, como se dizia então, O demônio familiar, inspirada em O Barbeiro de Sevilha, de Beaumarchais e na ópera decorrente, de Rossini, então em apresentação no Rio de Janeiro, e de chamar o escravo que é o protagonista, de Pedro. Nela, o escravo faz mil e uma estrepolias para garantir o casamento de seu dono com uma viúva rica, em detrimento do verdadeiro amor deste, uma jovem pobre. Por quê? Porque ele ambiciona ser cocheiro, e a fortuna da viúva permitiria a compra dos cavalos e do coche necessários. Bom, ele não consegue. Em compensação, consegue a liberdade, que lhe é dada como um “castigo”, um prêmio, pela “graça” de seu dono.

Este era o abolicionismo de Alencar: uma conquista da “boa consciência” dos donos, não da luta pela liberdade dos escravizados. Ocorre que ele, num gesto que podemos considerar tresloucado, dedicou a peça “à sua Majestade, a Imperatriz”,  dona Tereza Cristina, da Casa dos Bourbon. O casal imperial foi à estreia. Cada vez que o nome “Pedro” era chamado no palco, a plateia se voltava para o camarote imperial e… ria. Imperdoável. Penso que isto deve ter provocado a hostilidade do Imperador em relação a Alencar de maneira mais forte do que as críticas que este fez em relação ao poema de Gonçalves de Magalhães, A Confederação dos Tamoios, cuja publicação fora patrocinada pelo próprio D. Pedro II. Assim, não surpreende que quando Alencar se candidatou ao cargo de Senador pelo Ceará, sendo o primeiro da lista (naquele tempo os estados elegiam uma lista tríplice e o Imperador escolhia um dos seus membros), D. Pedro II escolheu outro.

Alencar teve ainda problemas com a censura. Sua peça As asas de um anjo, inspirada em A Dama das Camélias, de Dumas Filho, foi proibida pela polícia e pelo Conservatório Dramático, de que ele fazia parte e então abandonou.

Qual o problema? Alencar redimia a prostituta protagonista da peça, conseguindo para ela um casamento por amor (!). Além disto, punha em cena uma passagem em que o pai dela, bêbado, tentava seduzi-la. Foi demais!

Outro dado: em seu romance O Guarani, hoje acusado de ser “água com açúcar”, Alencar faz o novo Brasil nascer, no alto da palmeira que some no horizonte, do beijo entre uma branca, a loura e angelical Cecília, e um índio, o cavalheiresco, mas… índio, Peri. A imagem era tão forte que numa das traduções alemãs do livro (houve três, na época), ela foi suprimida, sendo substituída por um desfecho em que uma gigantesca onda da inundação do rio Paraíba {hoje do Sul} os engole antes de qualquer beijinho… Levado o enredo à ópera, por Carlos Gomes, O Guarani tornou-se um cartão de visitas internacional do Brasil, talvez o primeiro. Foi apresentada em 1996, em Nova York, com Placido Domingo (!) no papel de Peri!

E nas páginas da Wikipedia, em inglês, o romance é apresentado como uma obra “dark, sexual, gothic and lyrical”.

Tudo aquilo que o neo-moralismo bolsonariano detesta. Afinal, nem Peri veste azul nem Ceci rosa. Ambos estão quase pelados no alto da palmeira de onde fundam o Brasil.

Não deixemos que alucinados estraguem a compreensão de nossa literatura, e nosso amor por ela.

 

 

República do Absurdo

Governo Bolsonaro: atropelos e ridículos não são só cortina de fumaça

Sem negar a devida atenção às matérias econômicas, afirmações sem pé nem cabeça de Bolsonaro e sua turma, dos filhos e ministros guiados por Olavo de Carvalho, apontam para maré regressiva que também precisa ser combatida
por Flavio Aguiarpublicado 14/01/2019 09h56
Divulgação/Bolsonaro
Bolsonaro posse bancos

Plano mais fundamental do governo Bolsonaro é atrofiar, aleijar e a amputar a inteligência da juventude brasileira

Quase ao final do filme “perfume de mulher” (versão de 1992, dirigida por Martin Brest), o personagem vivido por Al Pacino, o tenente-coronel cego Frank Slade, faz uma defesa apaixonada do caráter do jovem Charlie, papel de Chris O’Donnel, que se recusa a dedurar colegas que ofenderam o diretor da escola em que estuda. Em seu inflamado discurso, o tenente-coronel, que lutou no Vietnam, diz que viu jovens aleijados na guerra, que perderam mãos, pés, braços ou pernas. Mas que nada se compara, diz ele, à visão de um “espírito amputado”: “não há prótese”, prossegue, “para isto”. 

Lembrei-me desta passagem ao testemunhar, seguidamente, a discussão sobre se as trapalhadas, vexames e ridículos de membros do governo Bolsonaro, incluindo o presidente e seus familiares, além da pastora visionária, do chanceler aloprado e muitos outros, também o guru espiritual desbocado e sua estupidez apelidada de “filosofia”, não passariam de uma “cortina de fumaça“.

Seu objetivo seria o de distrair os opositores e o conjunto da opinião pública, para não repararem as verdadeiras barbaridades que, à sombra, são o objetivo de fundo do governo: retirada de direitos, construção de um estado policialesco, intolerância diante de “diferentes” e “divergentes” do padrão familiar hétero, amputação do Estado brasileiro enquanto vetor de desenvolvimento e de inclusão social, aprofundamento da pobreza e da desigualdade, dentre outros.

Respeitosamente, discordo de quem vê neste desfile de absurdos e neste regozijo da ignorância auto-satisfeita apenas uma “cortina de fumaça“. Dentre as afirmações sem pé nem cabeça, dos negaceias, das idas e vindas desencontradas dos anúncios e desmentidos em série, o que me chamou mais a atenção, confesso, foi a afirmação da senhora Ministra da Família, de que “a religião perdera a força quando se permitiu a entrada da teoria da evolução nas escolas”.

A afirmação pode deixar pasmado quem a ouça ou leia, mas ela não é parte de uma “cortina de fumaça”. Sem desmerecer a devida atenção que se deve dar às atrocidades econômicas e os absurdos (in)constitucionais que estão chegando em tsunamis e catadupas, aquela frase é apenas a ponta do iceberg do objetivo mais profundo do governo empossado em 1º de janeiro e daquilo que ele tem de mais perigoso para a nação brasileira.

No momento em que este projeto de governo e de regime discricionários encontrar seu Waterloo – e mais dia menos dia este dia chegará – será possível recomeçar, ainda que à custa de muito sacrifício, visualizar a reconstrução do Estado de Direito e de Bem-Estar Social (pelo menos de diminuição do Mal-Estar…). Aí entra, como garantia para os algozes da Constituição de 1988, os carrascos de Lula e das esquerdas, a garra mais adunca e penetrante que este governo quer plantar: a atrofia, o aleijar, a amputação da inteligência da nossa juventude.

É isto que pretendem com a regressão histórica que planejam implantar, como um chip irremovível, uma plataforma irremediável, nos corações e mentes dos jovens que amadurecerão para o amanhã. É contra esta maré montante da estupidez e da ignorância que temos de lutar incansavelmente – sem esquecer do presente, sem esquecer nem desmerecer o passado de lutas e conquistas que temos a obrigação de salvaguardar como patrimônio para o futuro.

Estaremos nós – democratas de todas as correntes políticas, conservadores, progressistas, esquerdistas, liberais, centristas, radicais, moderados etc., e ponhamos etc. nisto – à altura de tamanho desafio? Conseguiremos fazer desaparecer esta, agora sim, cortina de fumaça de ressentimentos, mágoas, azedumes, inimizades, contrafeitos, etc., e também ponhamos etc. nisto, que obscurece nosso caminho, podendo impedi-lo?

Este é o nosso chamado principal: ganhar de novo os passos para o futuro, impedindo que o pântano grudento dos sectarismos e ódios mútuos nos faça atolar no meio do caminho. Há propostas boas já taxiando nas pistas, prontas para decolar, que resumo no anseio pela construção desta Frente Ampla pela Democracia e pela Inteligência.

Não nos neguemos a dar este passo decisivo, e deixemos para atrás quem, por qualquer motivo, se recusar a empreende-lo.

só desgraça, ou quase

2018: um ano ‘desbalançado’

Ano foi de continuidade de dramas que parecem sem saída, como o dos refugiados no Mediterrâneo, a ascensão do conservadorismo e do fascismo no mundo, e a consagração do embrutecimento da política mundial
por Flavio Aguiarpublicado 20/12/2018 11h12
Gage Skidmore/FLICKR/Marcelo Frazão/EBC
Trump e Bolsonaro

Deterioração da nossa política externa, anunciada com eleição de Bolsonaro, consagra a ‘diplomacia do capacho’ e está entre as ‘desgraças’ ocorridas em 2018

Fazer o balanço de 2018? Como, se este foi um ano desbalançado? Sem balanço. Sem jogo de cintura. Em grande parte, uma sucessão de desgraças

Foi um ano de coisas terríveis. Lembrando algumas: a continuidade da ascensão das extremas-direitas no mundo inteiro. Matteo Salvini e a Lega na Itália. Vox na Andaluzia, Espanha. Vitória de Bolsonaro no Brasil. Deterioração da nossa política externa, a presente e a anunciada, com agravamento e consagração da “diplomacia do capacho“. Pela primeira vez na história nossa política externa promete ficar atrelada não apenas à de outro país, mas à de uma facção de um partido político estrangeiro, aquela mais retrógrada e embrutecida.

Teve mais. Consagração do embrutecimento da política mundial, cujo exemplo mais acabado foi o assassinato do jornalista saudita Jamal Khashoggi no consulado de seu país em Istambul, na Turquia. A sufocação de um povo inteiro no Iêmen. Países desfeitos ou se desafazendo: além do Iêmen, Líbia, Iraque. O reino da estupidez avança: negação do aquecimento global por parte de Trump e seus capachos, como no caso brasileiro. Os Estados Unidos pressionando a ONU para que retire de suas declarações a palavra “gênero”.

Para completar, agora no final do ano, os Estados Unidos anunciam a retirada de suas tropas da Síria. Um bom sinal? Nem tanto: na verdade, trata-se de dar luz verde para seu aliado na OTAN, Tayyip Erdogan, atacar livremente os curdos, que se destacaram na luta contra o Estado Islâmico, derrotando-o em grande escala e fazendo encolher seu território.

Foi um ano de vitória da “nova política” liderada pelas táticas nocivas e deletérias de Steve Bannon, com sua futura implantação na Europa, onde o já mencionado sucesso do Vox na Andaluzia é talvez a cabeça de ponte. O ano da vitória das fake news, da mentira organizada, planejada, financiada ilegalmente, mas soberana e triunfante.

2018 foi um ano de continuidade de dramas que parecem sem saída: o dos refugiados no Mediterrâneo; as caravanas que saem da América Central em direção aos Estados Unidos. A agonia do povo palestino.

2018 foi também um ano de impasses e dúvidas. O movimento dos “Coletes Amarelos” na França é de esquerda ou de direita? Ou ambas as coisas? Ou uma coisa nova que foge às classificações antigas? Será um dos atestados da falência das políticas neo-liberais e seus planos de austeridade, que deixam populações desamparadas ou à míngua em escala mundial? Ou ao contrário, é um atestado de sucesso pois, embora fracassem em todo o mundo, seus seguidores se aferram messianicamente a elas e bloqueiam todas as alternativas?

Na Síria o regime de Bashar al Assad derrotou os rebeldes ajudados pelos EUA e seus aliados. Será isto bom ou ruim para o desvalido povo sírio? Benyamin Netanyahu está ameaçado por investigações de corrupção em Israel. Brigou com a extrema-direita, ele que já é extrema-direita. E agora?

Mais impasses e dúvidas: o começo do fim do reinado de Angela Merkel na Alemanha e na União Europeia. O que viria depois? A estrela de Emmanuel Macron, que mal subiu e já começou a declinar?

Foi também um ano de tropeços e trombadas da chanceler Theresa May com seu próprio Partido Conservador no Reino Unido em torno do inefável e deletério Brexit.

Jacob Zuma e Robert Mugabe saíram de cena, respectivamente na África do Sul e no Zimbabwe. Será isto bom ou mau? Houve mais um surto de ebola na África, desta vez na República Democrática do Congo. Isto é decididamente ruim, e deixa uma perplexidade no ar: a melhoria da infra-estrutura de transporte no continente africano facilita a propagação da doença. Mas agora, pelo menos há uma vacina, ainda em experimentação, mas já em uso pela OMS.

China e Rússia se consolidaram como “major players” diplomáticos, diante da política truculenta de Trump.

O caso de Julian Assange se complica na Embaixada do Equador em Londres.

Um ano de perdas irreparáveis: o incêndio do Museu Nacional no Rio de Janeiro e a perda total da vergonha em amplos setores do judiciário brasileiro, com a obstinação em manter detido o prisioneiro político numero 1 do mundo, o ex-presidente Lula, e a defesa despudorada por muitos de seus membros da flagrante irregularidade do auxílio-moradia, tornando-se este moeda de troca para conseguir um polpudo reajuste salarial em época de vacas magras para todo o povo brasileiro.

É verdade que houve alguns lampejos e bruxuleios de esperança. A vitória parcial dos Democratas nos EUA, e a ascensão de políticos e políticas mais à esquerda. O sucesso – até o momento – da frente portuguesa de esquerda, a Geringonça, o besouro que não poderia voar mas no entanto “avoa”.

A obstinada resistência do Papa Francisco I, acossado pela arqui-animosidade dos arqui-conservadores da Igreja Católica e do mundo. A aprovação pela ONU do Acordo Global sobre Migrantes e Refugiados, e a reafirmação do Acordo de Paris 2015 sobre o clima, apesar da denúncia por parte dos EUA e a ameaça de retirada por parte do futuro governo brasileiro, que já foi líder positivo de questões ambientais, e que tornou-se o novo pária na matéria.

Em 2018 consolidou-se a candidatura de Lula ao Prêmio Nobel da Paz em 2019. Não sabemos se ele o levará, já que a campanha contra do governo brasileiro será enorme e sibilina, mas o gesto já valeu.

A indicação de Sérgio Moro como Ministro da Justiça por Bolsonaro aumentaram-lhes as chances de obtenção do prêmio, bem como a da condenação do Brasil no Alto Comissariado de Direitos Humanos da ONU.

A aproximação das duas Coreias, com acenos de paz. O ainda tênue cessar-fogo na cidade de Hodeiddah, no Iêmen.

E veio a esperada, depois de tantos anos, vitória de Lopez Obrador no México. Apesar de tudo, Cuba ainda existe e resiste.

Certamente há mais coisas a comentar. Os leitores e as leitoras me perdoem, mas cansei. 2018 me deixou estafado.

Ah sim – last, but not least – , Cesare Battisti está novamente em fuga. Tomara que consiga driblar o Brasil de Fux/Dodge/Temer/Bolsonaro e a Itália de Matteo Salvini.

república das goiabas

A futura posição do Brasil na geopolítica deste e do outro mundo

No outro mundo, o país em que uma futura ministra declara ter visto Jesus em uma goiabeira, decididamente estaremos bem em 2019. Neste mundo, o real, não sei…
por Flavio Aguiarpublicado 13/12/2018 09h20, última modificação 13/12/2018 10h25
pixabay
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Goiabeira inspirou a ministra na recriação de história bíblica: os fatos, a cultura e a história não importam mais

Decididamente, no outro mundo estaremos em boas mãos em 2019.

Nosso futuro presidente, Jair Bolsonaro, é Messias. Damares Alves, Nossa futura ministra dos Direitos Humanos, da Cidadania, da Família, talvez dos índios, e afins, viu Jesus subir na goiabeira onde ela estava trepada, inconsolável.

O nosso futuro chanceler, Ernesto Araújo, cita como testemunho direto uma versão escrita, quase 4 séculos depois, de suposto depoimento do primeiro rei português, Dom Afonso Henrique, supostamente na sequência da batalha de Ourique, onde este daria conta de suposta visão que teve de Cristo prometendo-lhe a vitória contra cinco reis mouros. A batalha aconteceu na primeira metade do século 12, o suposto depoimento foi escrito a pedido de D. Manuel, o Venturoso, no começo do 16. Convenhamos, é muita suposição para um depoimento só. Mas historicamente , pelo visto, isto não importa.

Vai ver até que Jesus, que, pelo visto, além de caminhar sobre as águas, sobe em goiabeiras, lá esteve em Ourique (ou onde for, pois historicamente até o local da batalha é incerto) ou onde ela tiver acontecido e o suposto sonho do rei também. Sugiro que o carro presidencial, daqui por diante, tenha escrito em seu para-choque: “Se Jesus está na minha goiabeira, quem poderá contra mim?”.

Mas neste mundo, não sei. A coisa está complicada. Pela primeira vez na História, assim, com H maiúsculo, nossa política externa estará vinculada não à de um outro país – isto já aconteceu, embora em curtos períodos – mas à de uma facção de um partido político estrangeiro, os “Trumpetes” do Partido Republicano, que reúne em torno de si a escória da política mundial: além de Trump et caterva, Orban, Salvini, John Bolton, Steve Bannon, o Vox da Espanha, a extrema-direita holandesa, et al. da mesma laia.

Tudo em nome de uma fake-soberania-nacional, contra aprovações da ONU e de outros organismos internacionais. O futuro chanceler prometeu retirar o Brasil do acordo sobre migração da ONU, firmado no Marrocos dias atrás. Um insulto à história diplomática brasileira e ao Itamaraty.

A política externa brasileira desde há muito obedeceu a padrões profissionais e soberanos. Lá nos tempos coloniais, o mais pragmático Alexandre de Gusmão, o irmão do visionário Bartolomeu, aquele da barcarola que tocou fogo (pelo menos segundo a lenda) nas cortinas do Palácio Real de Lisboa, criou o Tratado de Madri, que substituiu o princípio do dito papal (de Tordesilhas) pelo direito do uti possidetis, uma espécie de uso capitão internacional, isto é, vamos ver como está a situação real das ocupações para ver quem fica com o quê.

O tratado não foi bom para os nossos índios guaranis das missões dos Sete Povos no Rio Grande do Sul. Houve revoltas, andanças militares, massacres e daí surgiu um de nossos primeiros mártires santificados popularmente, Sepé Tiaraju, cacique e corregedor da Missão de São Miguel, morto em combate em 7 ou 10 de fevereiro de 1756. Mas o tratado correspondia a uma extraordinária modernização da geopolítica de então, liberando-a do lastro eclesiástico e abrindo-a para uma espécie de realismo pragmático.

Depois, episódios de soberania não faltaram. D. Pedro I, com seus impulsos atrabiliários, livrou-nos dos laços portugueses. D. Pedro II enfrentou tanto a política do Rosas no Prata quanto as pretensões europeias na mesma região.

Há quem diga que o Brasil agiu no Paraguai de acordo com os ditames britânicos. Discordo. Sem negar os horrores cometidos nesta infeliz guerra, penso que o Brasil agiu por conta própria e Lopez foi um destrambelhado agressor, além de um péssimo analista da cena local e global. O que não justifica as atrocidades cometidas pela Tríplice Aliança contra a população paraguaia. 

A seguir D. Pedro II enfrentou soberanamente o Império Britânico, que nos fizera herdeiro da dívida portuguesa pelo transporte de João VI para o Rio de Janeiro, além de outras. Houve ter rompimento de relações por ocasião da chamada questão Christie. (E isto quem vos fala é alguém que, se vivesse naquelas épocas, teria combatido pela República nas tropas farroupilhas ao lado de Garibaldi, Anita, Teixeira Nunes, Netto Bento Gonçalves, Corte Real, Lucas de Oliveira, e tantos outros).

Rio Branco, depois, deu início a uma formação de nossa diplomacia que hoje é respeitada mundialmente como das mais profissionais e competentes do mundo. Os alinhamentos automáticos com os Estados Unidos aconteceram esporadicamente: no governo Dutra, no governo Castelo Branco, no governo Collor. Até mesmo durante a maior parte da Ditadura de 64 o Brasil manteve uma política externa autônoma.

Mas agora estaremos nas mãos das continências do nosso Messias à bandeira norte-americana, ao John Bolton, e das admirações do nosso futuro chanceler pela salvação que a parcela mais retrógrada do Partido Republicano ditará para o “Ocidente” seja lá o que isto signifique.

Que Jesus na Goiabeira nos proteja!