Um drama chamado Irlanda

Belas paisagens e riquíssima tradição cultural, moldadas por um clima quase sempre fechado, compõem cenário de um país que vive perigosamente à beira da recessão

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Prisão de Kilmanhaim, em Dublin, na Irlanda, onde foi filmado ‘Em Nome do Pai’

Durante a semana passada visitei a Irlanda. Atravessei o país por duas vezes. Na primeira, de leste para o sudoeste, de Dublin até Killarney (pronuncia-se Killárney) e arredores. Depois, subimos até Gallway, cidade predominantemente turística, mais ao norte, ainda na costa atlântica. Dali retornamos de oeste para leste, até Dublin, a capital.

A Irlanda é uma ilha – abençoada por paisagens absolutamente fantásticas, sobretudo na costa, onde as falésias espetaculares e os traços dos períodos de glaciação se sucedem. Ali se encontram também traços pré-históricos, inclusive transpostos para os tempos históricos, como as habitações de pedra chamadas de “BeehiveHuts” (“Casas Colmeias”) devido a seu formato abobadado. Estas casas começaram a ser construídas vinte séculos antes de Cristo, e foram usadas até os anos 1.200 da era cristã.

As paisagens são marcadas por ruínas de igrejas e castelos. As cores predominantes são o cinza – do céu predominantemente encoberto – e muitas tonalidades de verde pois o tempo quase sempre chuvoso e o clima considerado ameno para a latitude alta (Dublin, 53º. Norte, no meio da ilha, está quase na mesma latitude de Berlim, 52º. Norte), garantem uma vegetação exuberante, de aspecto subtropical, em quase toda a ilha.

Para o nosso padrão brasileiro o verão é muito frio, com as temperaturas oscilando durante o dia entre 10 e 20 graus. Num só dia contamos dezessete pancadas de chuva. Porém para um padrão europeu o inverno é ameno, com poucas incidências de temperaturas abaixo de zero e neve constante apenas nas regiões mais altas. A mínima absoluta registrada é apenas um grau maior do que a registrada no Brasil: – 18 graus contra 17 graus no Morro da Igreja, em Santa Catarina.

A Irlanda foi um país predominantemente rural e pobre. Até hoje podem se visitar as antigas chácaraspreservadas e ver como os camponeses viviam antigamente, de modo extremamente rústico, com as lareiras permanentemente acesas devido ao frio reinante mesmo na primavera e no verão, e de hábitos frugais. É um país de forte tradição católica conservadora: até hoje imagens de santos e de santas, misturados com símbolos militares, pululam por toda a parte.

É um país extremamente literário (Joyce, Yeats, Oscar Wilde, Samuel Beckett, Bernard Shaw, Swift, entre muitos outros), de uma literatura tão rica quanto rebelde, e muito musical, seja nas canções tradicionais ou na música erudita. Literalmente o visitante tropeça em música, nos pubs e na rua, saboreando a cerveja local (cuja marca mais famosa é a Guinness, mas há centenas de outras) ou o uísque, de sabor mais forte do que o escocês (Bushmills é a destilaria mais antiga do mundo em operação).

Na capital há algumas visitas obrigatórias: o pub que assinala que ali James Joyce encontrou pela primeira vez Nora, sua futura esposa, por exemplo. A biblioteca do Trinity College, uma das mais famosas da Europa, com seu Book of Kells, uma versão da Bíblia do século IX dC, com iluminuras e comentários.

Outra visita obrigatória é a Catedral de St. Patrick, embora menos impactante do que a anterior, devido à extrema comercialização de seu interior, onde se compra toda sorte de bugigangas imagináveis ao lado de velas e cruzes celtas, aquelas com um halo circular ao redor dos braços e da cabeça. Ali está o túmulo de Jonathan Swift, que foi diácono da igreja.

Também não se pode perder a prisão de Kilmanhaim, uma das mais famosas da Europa. Ali, além dos presos comuns, ficaram detidos – e alguns foram executados – os patriotas que lutaram pela independência da ilha em relação à Grã-Bretanha em 1916. A independência parcial (a Grã-Bretanha reteve a Irlanda do Norte) foi obtida em 1922, o que dividiu os nacionalistas em duas facções (uma queria lutar até a libertação de toda a ilha) que promoveram uma sangrenta guerra civil. Esta prisão foi cenários de vários filmes, entre eles o conhecido “Em nome do pai”. Já o Castelo de Dublin também foi cenário das lutas de 1916, sendo a sede do governo britânico na ilha.

Hoje a Irlanda é palco de outros dramas. Foi o primeiro país europeu a declarar-se oficialmente em recessão depois da crise financeira de 2007/2008. A partir dos anos 90 a Irlanda tornara-se a menina dos olhos do neoliberalismo em expansão. Desregulamentou completamente seu sistema bancário, que promoveu uma expansão descontrolada do crédito imobiliário e contraiu dívidas colossais no sistema financeiro internacional.

Também instituiu um imposto corporativo único, de 12,5%, o que atraiu mais capitais financeiros. Quando a crise estourou nos Estados Unidos, estes se retiraram imediatamente para saldar seus compromissos em outras plagas. O sistema bancário quebrou, o imobiliário entrou em parafuso, e o governo – então formado por uma coligação entre o partido conservador  Fianna Fail (no poder por muitas décadas) e o Partido Verde – deu garantias incondicionais aos bancos. Entretanto as dívidas destes tinham sido grosseiramente subestimadas e o país terminou quebrando.

Vieram os inevitáveis planos recessivos do FMI, da União Europeia e do Banco Central Europeu, com suas receitas amargas. Entre a recessão, uma dívida que subiu a 125% do PIB, um desemprego que em um ano foi de 6,5% da força de trabalho para 14,5% (2009), e os escândalos bancários, as manifestações de rua, com estudantes, trabalhadores e aposentados, se avolumaram. O governo caiu e subiu uma outra coligação igualmente estranha, com o conservador Fianna Gael e o Partido Trabalhista, que continuou a seguir a cartilha recessiva do FMI, mas se manteve no poder até hoje.

A partir de 2007 até hoje o número de furtos e roubos por ano cresceu em 10% e a prostituição dobrou. Cerca de 35 mil irlandeses (numa população de pouco menos de 5 milhões) emigraram, sobretudo jovens desempregados. Porém hoje a economia irlandesa é descrita oficialmente como “em recuperação”, apesar da taxa de desemprego permanecer alta: 11,5% em julho deste ano.

Apesar destas dificuldades o povo irlandês se mantém extremamente hospitaleiro e  alegre. O visitante é bem recebido por onde ande. Não perca. Mas não esqueça a capa de chuva. Só o guarda-chuva não basta.

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