teorias e práticas

Dilma no ‘NY Times’: a Copa, o Brasil e o capital no século 21

O pensamento que privilegia a construção das desigualdades tende a se tornar cada vez mais autoritário quanto mais os fatos desmintam as teses que a sustentem

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Home page do site do NY Times com entrevista de Dilma sobre o Mundial de Futebol no Brasil

A  defesa da realização da Copa no Brasil pela presidenta Dilma Rousseff alcançou alguma repercussão internacional, e até o New York Times deu-lhe destaque em sua primeira página da edição online de quarta feira (4).

A repercussão poderia ter sido maior e melhor, caso boa parte da mídia internacional – disposta a combater contra o Brasil e o governo brasileiro – estivesse mais comprometida com o princípio do contraditório, o que não é o caso. Mas, enfim, já foi uma concessão, embora a matéria contemple apenas dados estatísticos negativos em relação ao país, à Copa e ao governo.

Em suas declarações, a presidenta mencionou o livro do pesquisador francês Thomas Piketty, no original Le Capital au siècle XXI (Paris: Seuil, 2013), duramente atacado pelos Financial Times’ boys. A menção não poderia ser mais oportuna.

Embora sem abordar especificamente o caso brasileiro, o estudo de Piketty é eloquente em mostrar a sua originalidade. Poderíamos citar apenas um dado para exemplificar: enquanto o mundo perdeu 60 milhões de postos de trabalho na última década, o Brasil criou 16 milhões de postos formais, o que implica melhor atendimento dos direitos trabalhistas. Mais: num mundo em que o valor dos salários despenca, como na Europa, o Brasil valorizou sua participação na renda nacional, a começar por uma sólida política de recuperação do poder aquisitivo do salário mínimo.

O propósito do livro – cujo título dialoga com O Capital, de Karl Marx, é recolocar na ordem do dia o tema da concentração da riqueza e da renda, na sociedade capitalista, como preocupação central – junto com seu corolário, a construção da desigualdade.

A aproximação com Marx – e outros economistas do século 19, como Ricardo – tem dois gumes. Piketty não contesta os fundamentos da ordem capitalista, como Marx fazia, e rejeita o que chama de aproximação “apocalíptica” deste em relação a ela. Vê no autor de O Capital o que considera um ponto lacunoso na reflexão do século 19, a falta de melhores estatísticas para comprovar as teses defendidas, nos diferentes aportes dos vários economistas.

Considera que na verdade a história desmentiu as teses de Marx sobre o inevitável fim do capitalismo. Mas, do outro lado do corte, Piketty afirma que, se nem sempre Marx (e outros economistas daquela época) teve boas respostas, ele tinha quase sempre as boas perguntas – que, ainda segundo o autor do século 21, estão por demais esquecidas nas econometrias em andamento hoje, à solta pelo pensamento ortodoxo dominante na Europa (por exemplo) e na mídia econômica mundial.

No centro destas perguntas estava a sobre a relação entre o progresso da ordem capitalista e a já mencionada concentração da renda e do capital,  e a construção da desigualdade. Para Piketty esta questão passou para as gavetas fechadas da maioria dos economistas do século 20 e de hoje, porque o moto dominante destes foi o pensamento de Simon Kusnet.

Este pesquisador norte-americano, estudando o comportamento da ordem capitalista na primeira metade do século 20, formulou a contra-teoria (em relação ao apocalipse marxista) de que o crescimento econômico teria um comportamento semelhante aos da maré: quando ela sobe, todos os barcos sobem, dentro de uma sociedade e na relação entre as sociedades.

Ou seja: embora concentrando renda e riqueza num primeiro momento, ao fim e ao cabo o crescimento provoca uma melhoria geral. Como argumento, Kusnet aponta que no decênio de 1910-1920, na sociedade norte-americana os 10% mais ricos detinham entre 45 e 50% da renda nacional, enquanto em 1940 esta proporção caíra para algo entre 30 e 35%.

Piketty argumenta que Kusnet deixou de lado fatores importantes, como o terremoto do New Deal, a Segunda Guerra Mundial, e também se baseava demais nos Estados Unidos. Posteriormente, durante a Guerra Fria, os argumentos de Kusnet se ideologizaram mais ainda, pois no confronto com as sociedades comunistas era necessário louvar as benesses da ordem capitalista.

Porém, diz Piketty, na verdade não temos nenhuma razão “para crer no caráter auto-equlibrado”, como tendência, no crescimento econômico capitalista. Segundo ele, ainda, no afà de defender esta capacidade para a auto-regulação do capital e dos mercados, os economistas ortodoxos de hoje deixam de perceber que quanto mais os mercados são “perfeitos” no sentido que apregoam, mais a desigualdade progride para níveis dramáticos e insuportáveis.

O pesquisador francês não “condena” a desigualdade, que considera algo inevitável e até desejável, dentro de certos limites. Quais são estes limites: os de não subverterem o que, segundo ele, seria um princípio democrático das sociedades capitalistas, qual seja, o de recompensar cada um por seus méritos e seu trabalho. Para ele há um ponto crítico nesta ordem, no momento em que “a taxa de rendimento do capital ultrapassa significativamente a taxa de crescimento” – como acontece hoje, neste ainda começo de século 21. Isto determina que “os patrimônios provenientes do passado se recapitalizam mais rapidamente do que o ritmo da progressão da produção e das rendas [proveniente desta].

Uma maneira cristalina de prever um corolário desta condição é ver que a posição social adquirida e a herança de patrimônio se sobrepõem àquela conseguida através do próprio mérito. Outra é compreender que diante destes ritmos desiguais de apropriação da renda mais vale especular do que investir em produção.

Para deter esta tendência, Piketty advoga uma série de medidas para controlar estes “abusos da concentração de renda”, entre elas, a difícil e complicada adoção de uma taxa internacional sobre a circulação do capital. Neste ponto, argumentam os críticos à esquerda, ele esquece que isto não basta; no outro polo, é necessário ter uma política consistente de elevação dos salários e de promoção do trabalho na apropriação das riquezas nacionais, que é o que, a seu modo, os últimos três governos brasileiros vieram fazendo, embora alguns destes críticos mais à esquerda não o reconheçam, e para desespero daqueles Financial Times’ boys

De qualquer modo, o livro de Piketty é instigante, e levanta uma questão colateral importantíssima. Num artigo do ano passado (Berliner Zeitung, 5/6 de abril de 2012, “Akademische Prostituition”), o economista Stephan Kaufman apontava que não só a grande maioria dos economistas fora completamente surpreendida pela crise financeira de 2007/2008, mas também a sua crença absoluta na adequação de seus modelos matemáticos e abstratos para “ler” a economia embotava a sua capacidade de discernimento e interpretação dela.

Mais: apontava o artigo que no ensino de economia (o autor se apoiava no caso alemão, mas a abrangência do tema e da crítica vai muito mais além) predominava absolutamente a louvação e a crença nos valores éticos e na autorregulamentação dos mercados. E que quem não rezasse por esta cartilha teria sua carreira seriamente prejudicada, tanto no setor privado quanto no público.

Esta reflexão sobre a unidimensionalidade (para retomar uma expressão de Herbert Marcuse) no ensino e na praxis econômica – visão crítica compartilhada também por analistas como Paul Krugman e Joseph Stiglitz – vai ao encontro de um dos corolários inevitáveis do livro de Piketty, qual seja, o de que um dos impedimentos para reverter este ciclo de hegemonia dos “patrimônios adquiridos” (através e voltados para a especulação)  sobre “os patrimônios a construir” (através da produção) está na hegemonia daquela nos currículos universitários. Uma hegemonia que tende a se tornar cada vez mais autoritária, quanto mais os fatos desmintam as teses que a sustentem.

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