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Um espinho em muitas gargantas chamado Ucrânia

Dado que a anexação da Crimeia à Rússia é irreversível, o 'desencravo' vai depender agora do bom senso do camarada Putin. O país ainda pode se tornar um caldeirão político

EFE/ANASTASIA VLASOVA

Soldados ucranianos ocupam posições na fronteira com a Crimeia. Tensão tem potencial para chegar a conflito

São 194 bilhões de dólares! Este é o montante que os bancos europeus têm comprometido com a Rússia. E dependendo do (des)andar da carruagem, esta soma poderá estar em perigo. Só os bancos da Áustria – país que primeiro sofreria com um congelamento bancário – têm 17 bilhões investidos na Ucrânia e na Rússia.

Além disto, entre 25% e 30% da energia consumida na Europa – e este percentual cresce nos países do leste europeu – são fornecidos pela Gazprom, a estatal russa que exporta o gás do país. Estrategicamente, a Rússia já está pesquisando consumidores alternativos para suas exportações do produto. A situação europeia é mais delicada: há começos de conversa sobre a utilização do gás obtido a partir do xisto norte-americano, mas isto vai levar tempo.

Como se isto não bastasse, o novo governo ucraniano decretou um aumento brutal de 50% no preço do gás para os consumidores a partir de 1º de maio próximo, num movimento que o governo anterior, de Viktor Yanukovitch, se recusara a fazer, graças a uma promessa de investimento de US$ 15 bilhões por parte da Rússia e de redução no preço do gás exportado para o país.

Agora, como a Rússia entregara apenas algo entre US$ 2 e 3 bilhões do total, e congelou o resto diante da reviravolta política em Kiev, a Ucrânia prepara-se para receber uma ajuda do FMI cujo montante pode chegar no curto prazo a US$ 18 bilhões e a US$ 27 bilhões no longo prazo. Junto com a ajuda, virá o conhecido e amargo receituário recessivo que campeia pelos países endividados da Europa.

Por isso a inquietação cresce entre os trabalhadores do setor industrial, concentrados no leste do país, junto à fronteira russa, temendo os inevitáveis arrocho e desemprego. Algumas outras províncias, seguindo o exemplo da Crimeia, registram movimentos  exigindo referendos sobre sua situação e lealdades políticas.

A resposta do novo governo de Kiev tem sido nula, a não ser pela intensificação da vigilância política exercida pelas novas autoridades da segurança, nomeadas depois da queda de Yanukovitch. Ou seja, a Ucrânia ainda pode tornar-se um caldeirão político efervescente, ou até mesmo derreter.

Em Kiev a situação não é nada tranquilizante. Os militantes de extrema direita que lideraram as manifestações na praça Maidan vêm se recusando a abandonar os prédios públicos ocupados, bem como a desfazer as barricadas montadas no centro da cidade. Num confronto com a polícia morreu um de seus líderes, baleado aparentemente ao resistir a uma ordem de prisão. Estes movimentos têm uma formação paramilitar, como demonstraram nos confrontos com a polícia de choque (hoje desarticulada), em que levaram vantagem sobre esta. Têm uma grande autonomia em relação aos líderes de extrema-direita que estão no parlamento e no novo governo.

Entrementes, em visita à Europa o presidente Barack Obama aumentou a agressividade retórica contra Vladimir Putin, acusando-o de agredir  um pequeno país fronteiriço, de querer redesenhar fronteiras manu militari na Europa com a anexação da Crimeia (96% dos eleitores que compareceram ao referendo a respeito votaram a favor da volta à Rússia), ao mesmo tempo em que rejeitava qualquer possibilidade de escalada militar por parte do Ocidente.

Por seu lado, Putin realiza manobras militares na fronteira com a Ucrânia, aumentando o contingente de soldados e armamento na região. Pode ser uma ameaça real; pode ser também uma resposta algo “retórica” à ofensiva retórica e econômica da União Europeia, dos Estados Unidos e do G-7, cuja reunião (deveria ser o G-8, incluindo a Rússia) colocou o governo de Moscou de castigo, fora da sala, até segunda ordem.

Pode assinalar simplesmente que Putin quer demonstrar um dar de ombros diante das ameaças do Ocidente, preferindo tal gesto ao que seria pior – o de congelar de alguma forma os investimentos bancários dos europeus no país ou de apertar um pouco a torneira do gasoduto, o que causaria um pânico atormentado até mesmo na poderosa economia alemã.

Tudo isto mostra como a Ucrânia tornou-se um espinho de muitas pontas (!) cravado em várias gargantas ao mesmo tempo, desde Washington até Kiev, passando pelas gargantas europeias. O ex-chanceler alemão Helmut Schmidt (SPD) criticou duramente os atuais governantes dos países da União Europeia, acusando sua política – de acuar Vladimir Putin através da Ucrânia – de uma “rematada estupidez” (“dummes Zeug”, em alemão). Mas sua voz é uma isolada discordante na torrente retórica antirrussa que não hesita em atacar Putin e em elogiar os “heróis” da praça Maidan em Kiev – na verdade os neonazis que querem instaurar uma política xenófoba – e não apenas contra os russos – no país de seus sonhos e dos nossos pesadelos.

Como desencravar o espinho das gargantas? Dado que a anexação da Crimeia à Rússia é irreversível (aliás, até hoje ninguém compreendeu completamente por que Khruschev a entregou à Ucrânia nos anos 1950), o “desencravo” vai depender agora do bom senso do camarada Putin. Uma intervenção armada em outras regiões da Ucrânia agravaria o problema, bem como retaliações econômicas no campo financeiro e energético diante da agressividade do Ocidente só pioraria a situação para todos, inclusive para a Rússia.

Portanto, o melhor para Putin seria deixar o Ocidente se enrolar e desenrolar em sua retórica, e aguardar os acontecimentos, mantendo posições firmes no que diz respeito às questões da Síria e do programa nuclear iraniano que, estrategicamente, são de fato os problemas mais importantes. E os países do Ocidente, mais o Japão, com Obama à frente de todos, sabem muito bem disto.