Egito: golpe ou não golpe, eis a questão!

Consequências podem ir desde uma disposição de negociação maior entre as irmandades e as forças laicas até uma radicalização entre lideranças daquelas que considerem a via eleitoral vedada para elas

Mohammed Saber/efe

Exército depôs e prendeu Mursi num quartel, caçou lideranças da Irmandade Muçulmana, prendendo quase todas

A entrevista do embaixador do Egito em Brasília, Hossam Zaki, neste site, mostra o labirinto de palavras em que as ações políticas vão entrando cada vez mais. O embaixador Zaki declara que não houve “golpe de estado” no Egito.Afinal, o Exército depôs e prendeu o presidente Mohamed Mursi num quartel, caçou lideranças da Irmandade Muçulmana, prendendo quase todas, fechou agências de notíciais, inclusive estrangeiras, como a da Al Jazeera, e agora, enquanto estou escrevendo este post para o blog, Exército e polícia estão atirando contra multidões de manifestantes no Cairo e no Sinai, já com três mortos declarados. Se isso não foi golpe de estado, então o que foi?

Fala-se em “intervenção militar”, porque os militares não suspenderam a possibilidade de eleição. Ao contrário, anunciaram uma para mais além. Anunciaram o retorno à discussão sobre a Constituição. Mas o fato é que depuseram um presidente eleito. É verdade que um presidente que cometeu uma série de erros políticos, sendo o maior deles o de querer governar sozinho com seu partido um país terrível e completamente dividido entre forças conflitantes, que vão desde a extrema-esquerda até os saudosistas do tempo de Mubarak.

“Intervenção militar”? Neste contexto só há uma forma de “intervenção militar”, a do golpe de estado. Lembremos, com base na história do Brasil, um “contragolpe militar”. Depois da eleição de Juscelino, o presidente em exercício, Café-Filho (que fora o vice de Getúlio) se recolheu a um hospital. O presidente da Câmara, Carlos Luz, assumindo a presidência, decidiu afastar todos os militares que seriam favoráveis à posse de Juscelino. Era o caminho aberto para declarar nula, de alguma forma, a eleição. Isso sim, era um golpe de estado.

O general Lott, então ministro da Guerra (como era chamado o atual ministro do Exército), botou a tropa na rua para garantir a posse do presidente eleito. Obrigou Luz e outros golpistas a se refugiarem num cruzador, o Tamandaré, ou em embaixadas, como Carlos Lacerda, que foi para a de Cuba (!). Lott entregou a presidência ao presidente do Senado, Nereu Ramos. Isso sim foi um contragolpe, não um golpe de estado. O presidente eleito foi empossado, de acordo com a Constituição.

Não é o que aconteceu no Egito. O presidente Mursi foi concentrando poderes, e é verdade que queria apressar uma certa dose de islamização da Constituição. Lutava contra um sistema judiciário em grande parte herdeiro dos tempos de Mubarak, e tinha ao lado movimentos laicos que não queria reconhecer como possíveis aliados. Talvez, influenciado por correligionários da Irmandade Muçulmana, tenha tido uma overdose de si mesmo. Houve pressão das ruas. Criou-se a possibilidade do confronto começar por elas, entre partidários da Irmandade e das oposições laicas. Sem as Forças Armadas, o presidente não controlaria a situação. Os generais resolveram então controlar a presidência. Foi ou não foi golpe de estado?

Para deslindar as situações, é preciso chamá-las pelo nome. Não inventar outros. Resolver no dicionário o que tem que ser resolvido nas ruas ou nos parlamentos. O nome “intervenção militar” vem na esteira de querer garantir o apoio das potências ocidentais para a ação dos militares. Não é descabido o esforço. Afinal, ao mesmo tempo em que as linhas das manifestações das referidas potências manifestavam a preocupação com a “intervenção militar”, as entrelinhas não conseguiam esconder o alívio por ver a Irmandade Muçulmana fora do poder no Cairo. Talvez haja a esperança, da parte delas, de que alguma força liberal venha a assumir o poder nas eleições futuras e consiga cativar pelo menos uma parte do apoio do Exército, que tem uma ligação umbilical com diversos setores da economia egípcia.

Fica, porém, a interrogação sobre o que as irmandades muçulmanas tirarão como lição desta série de eventos. Desde logo, se apresentaram duas tendências. Uma considera que Mursi foi com sede demais ao pote, querendo apressar demasiadamente a islamização da estrutura legal egípcia, concentrando poderes, e se isolando, e a Irmandade, das demais forças políticas. Outra parte da afirmação de que “a democracia não é para os muçulmanos organizados politicamente como tal”, só para quem as potências do Ocidente e o Exército no caso Egípcio, ou os reis e emires e em outros países, aceitem tolerar.

A primeira interpretação vai crescer, por exemplo, dentro do Ennhadda, o partido muçulmano que está no poder na Tunísia. A segunda, por exemplo, entre os partidários muçulmanos na Líbia. As consequências podem ir desde uma disposição de negociação maior entre as irmandades e as forças laicas até uma radicalização entre lideranças daquelas que considerem a via eleitoral vedada para elas.

A ver. Mas que houve golpe de estado no Egito, houve.

Leia também

Últimas notícias