Ética?

Edward Snowden, o Robin Hood da espionagem

Num mundo cujas ações se medem apenas por sua eficácia, obtida através da força bruta ou da sutileza, as escolhas éticas terminam por se basear apenas no discernimento individual

Kay Nietfeld/EFE

O mundo em que trabalhava Snowden se mostra cada vez mais assustador

O caso se complica cada vez mais. Refiro-me ao “caso Snowden”, nesta altura provavelmente ainda retido na ala de trânsito do aeroporto internacional de Moscou.
O romancista inglês John Le Carré – que serviu no serviço secreto britânico e aí bebeu para fazer os enredos de suas novelas – é autor de uma das mais agudas avaliações sobre o fim da Guerra Fria, cuja referência, infelizmente, perdi: “Venceram os bandidos. Dos dois lados”. Esta consideração embasa e ilumina muito do que o romancista continuou escrevendo, depois do fim daquele conflito.

Isto coloca seus protagonistas diante de um desafio complicadíssimo: num mundo que foi perdendo as balizas de comportamento, cujas ações se medem apenas por sua eficácia, obtida através da força bruta ou da sutileza cínica, as escolhas éticas terminam por se basear apenas no discernimento individual. É um mundo que inverte o lugar-comum atribuído a Maquiavel: agora são os meios que justificam os fins.

Não importa o fim: o que importa é a eficácia para atingi-lo. Se o protagonista de uma ação consegue atingir o seu fim, mesmo que repugnante, tudo se justifica, inclusive o próprio fim conseguido. Para ficarmos num exemplo bem complicado, lembremos o assassinato de Bin Laden. Nunca tive nem tenho agora a menor simpatia ou solidariedade por Bin Laden e seus crimes; mas não tenho a menor  empatia nem simpatia por seu “justiçamento” à la John Wayne, ou lei de Lynch.

Este é o mundo em que Snowden trabalhava. E as revelações que vêm à tona são cada vez mais assustadoras. Além das espionagens em si mesmas consideradas, o fato mais horripilante que até agora veio à luz é o da constituição, a partir do atentado de 11 de setembro de 2001, de um tribunal secreto especial, chamado de “Fisa Court” (de Foreign Intelligence Surveillance”), para “julgar” – na verdade amparar legalmente – as ações da National Security Agency, para a qual Snowden trabalhava. Fossem elas horripilantes, inconstitucionais, o diabo a quatro.

Sob a ação da Fisa Court, as empresas de internet – Yahoo, Apple, Google, Facebook Microsoft, e outras – foram sendo intimadas a fornecer a N. S. A. toda a sua “metadata” disponível. “Metadata”: o termo vem da telefonia. As companhias telefônicas são obrigadas a entregar às autoridades espiãs as listas completas de quem chamou quem e quando. No caso dos telefones, vai só a informação sobre os números em contato e as datas em que isto aconteceu; tais listas são uma das bases, no entanto, para determinar o perfil dos usuários e decidir quando uma investigação – escuta – mais a fundo poderá ser feita.

No caso da internet, no entanto, é praticamente impossível desligar a informação sobre a conexão do acesso ao conteúdo conectado. Por quê? Porque os servidores, processadores, empresas etc. armazenam este conteúdo – muitas vezes para fins comerciais, como fornecimento de perfis (também secretamente) a empresas de publicidade, por exemplo, que começam a bombardear os usuários com aquilo que pensam ser do seu “interesse”. Ou seja, a espionagem, tanto a de fim privado como a de fim de segurança do Estado,  é maior e imediatamente de maior eficácia. Novamente, os meios justificam os fins.

Em 2008 – apareceu agora tal revelação – a Yahoo moveu uma ação sobre as determinações da Fisa Court a respeito deste controle. Aparentemente perdeu e, de quebra, o material todo: a ação, os argumentos, os contra-argumentos, a sentença, foram considerados matéria de segurança nacional e portanto tiveram sua divulgação proibida. Agora, na esteira das revelações de Snowden, a Yahoo quer uma autorização para divulgar os dados.

O motivo desta vontade é, evidentemente, mostrar-se como uma empresa “do lado do usuário”. “Da privacidade do usuário”. Por quê? Porque o “efeito Snowden” chegou até estas grandes processadoras de informação. Uma delas, pequena, chamada DuckDuckGo, com sede na Pensilvânia, nos Estados Unidos, propriedade de Gabriel Weinberg, responsável  por uma página chamada “My Start” no Mozilla, registrou um verdadeiro terremoto em seu tráfego, como diz o jargão do ramo. As revelações de Snowden vieram à luz a partir de Hong Kong, dez horas, um pouco mais ou um pouco menos, à frente do Ocidente, no dia 6 de junho. Neste dia, o tráfego de usuários da DDGo pulou, em questão de horas, de 1,7 para 3 milhões de usuários.

Como assim? É que a DuckDuckGo (o nome vem do inglês Duck Duck Goose, Pato, Pato, Ganso, uma brincadeira de criança parecida com a brasileira do “Ovo Podre”) não armazena dados. Se o governo pedir a lista da DDGo, não terá nada na resposta, porque não haverá lista. E a corrida à DDGo continua. Seu proprietário terá de aumentar o espaço, a banda, sei lá o quê. As outras processadoras – as grandes irmãs do setor – sentiram a ameaça. E agora, Josés?

Este é o mundo em que Snowden fez a sua escolha. Tornou-se um bandido (um “desesperado”, na terminologia do faroeste) para os Estados Unidos e vários governos seus cúmplices, um herói da privacidade e da liberdade de expressão para muitos, uma lança de ataque e ao mesmo tempo um espinho na garganta para Vladimir Putin, um nó na garganta ou o desate de alternativas. Um protagonista  do nosso tempo, do tempo definido acima por Le Carré. O Robin Hood dos tempos digitais, caçado pelo Xerife de Nottingham, mas considerado herói por quem percebeu a lebre – e o tamanho da encrenca – que ele levantou.

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